Princípios da forma urbana

Tradição e modernidade

Mesmo nas construções mais modernas e industrializadas, processos tradicionais de urbanização continuam vigentes, tanto em áreas mais formalizadas, quanto nas mais vernaculares e tradicionais.

Dinâmica urbana

as transformações da cidade, geralmente, contam com processos e ações que seguem lógicas tradicionais. Ressalta-se que processo de urbanização em si é tradicional, o fator de modernidade está naquelas intervenções mais “unitárias”, pontuais e de grande porte. Como exemplo tem-se as operações urbanísticas relacionadas a eventos maiores ou obras de infraestrutura de grande porte, como o centro administrativo estadual em Belo Horizonte e o Porto Maravilha, no Rio de Janeiro). Plano Piloto de Brasília e os diversos condomínio fechados encontrados por todo o país (murados, porém com características mais orgânicas) também podem ilustrar essa questão.

Urbanismo moderno

caracteriza-se por processos de urbanização mais contemporâneos, que pretendem “pensar a cidade como um produto fixo”. Em geral, contam com desenvolvimento urbano planejado e visam retorno financeiro, a partir de uma sistemática com começo, meio e fim.

Contemporaneamente, há uma visão de que a lei cria a realidade, inclusive o próprio processo de elaborá-la é suscetível a interesses diversos, tornando-se algo mais complexo, que demanda a participação de diferentes agentes.

Planejamento urbano

forma de conter a ação mais espontânea de parte dos agentes que atuam na cidade, estando relacionada a um maior controle e poder dos grupos econômicos. Há também a participação de outros indivíduos relacionados com os corpos técnicos, agentes da comunidade, etc. Esse processo vai se obstado por certo policiamento, que tende a favorecer certos grupos em detrimento de outros.

Analisa-se todos esses processos tradicionais de urbanização, tanto em seu lado mais espontâneo com diferentes agentes atuando no tecido e no território, quanto na tentativa de imposição de alguma forma de ordem, consenso ou de limitação do poder de ação das pessoas em nome de um certo equilíbrio ou homogeneidade entre os diferentes agentes. Tudo isso gera tecidos urbanos em praticamente todo mundo e em todas as culturas que produzem algum tipo de urbanização, ou seja, uma combinação de tipos edilícios diferentes e uma associação mais ou menos aberta e em crescimento entre esses tipos, sendo encontrados em uma configuração que é semelhante ao diagrama conceitual criando por Léon Krier em 1983.


Léon Krier, Civitas, 1983
Figura 1: Léon Krier, Civitas, 1983

Léon Krier fala sobre certas sínteses relacionadas à compreensão do funcionamento das cidades. Ele propõe o entendimento de que uma cidade é uma combinação entre a chamada res publica (coisa pública), literalmente, a “república”, ou seja, aquilo que concentra a importância política e coletiva cidadã. Contrasta esse conceito com a chamada res economica (coisa econômica ou privada), que é o espaço onde os interesses dos diferentes agentes urbanos (pessoas que vivem, trabalham e são proprietárias de imóveis na cidade) vão constituir em termos de tecido urbanizado e construído (fig. 1).

Assim, a cidade vai ser o resultado da articulação entre esses interesses, na forma de um sistema de intenções voltadas para os poderes dominantes (políticos ou econômicos), muitas vezes associados ao controle sobre o Estado, o poder público e a administração municipal.

Encontram-se, então, monumentos que falam do poder público, do Estado, das instâncias representativas ou não da administração e de outras formas de poder que vão ser relevantes para uma determinada cultura e sociedade, além da religião (a depender de quão associada ela está ao Estado).

Refere-se também a outros ambientes relativos a uma certa autoimagem da cidade enquanto obra coletiva, como mercados, teatros, monumentos comemorativos. Eles não têm necessariamente uma função extremamente clara no sentido de ser uma afirmação do poder do Estado, da Igreja, etc., sendo pontos de agregação de determinadas identidades sociais e culturais urbanas.

A toda essa constelação de símbolos de natureza representativa e política da cidade será agregado um tecido formado não apenas por grandes intervenções, decisões e tentativas de impor uma certa imagem para o âmbito urbano. Entretanto, observa-se um processo de crescimento e consolidação desse tecido, que será predominantemente conduzido por agentes particulares e em pequena escala. Isso ocorre a partir da dimensão da cidade, com seus milhares de lotes e edificações singulares com diferentes proprietários. Estes, em sua maioria, atuam em seus imóveis, gerindo processos de crescimento, consolidação, adensamento e transformação do tecido urbano.

Conceitos de cidade

Os conceitos de cidade são muito diversos, como aqueles advindos da Geografia ou da História, que veem a cidade como uma concentração de pessoas, que não atuam em atividades agrárias/de produção de alimento. Outros autores vão defini-la sob a perspectiva da densidade ou das diferentes funções de seus edifícios. Entretanto, nenhum deles impede o reconhecimento de que as cidades são facilmente reconhecíveis visualmente, por serem um daqueles objetos que oferecem um entendimento intuitivo muito direto, sem permitir a formulação de uma definição precisa e exaustiva necessariamente.


Destacam-se os casos limite, como o questionamento acerca dos subúrbios e dos tecidos difusos constituem ou não cidade. Todos esses aspectos e casos, inclusive os mais problemáticos do ponto de vista da concepção de processos de urbanização, contrastando com as tentativas de controle e restrição das possibilidades de transformação urbana, reforçam sua visão como um processo que pode ser facilmente identificado (fig. 2).

Dessa forma, um subúrbio poderia ser compreendido como uma tentativa de “congelar” o processo de urbanização, em um determinado momento de relativamente baixa densidade.

Constantinopla c. 360 d.C., reconstituição por Rocío Espín Piñar, 2017
Figura 2: Constantinopla c. 360 d.C., reconstituição por Rocío Espín Piñar, 2017

Tecidos difusos sobre substrato de origem romana na planície padana, norte da Itália. Crédito: Museu Aldo Rossi
Figura 3: Tecidos difusos sobre substrato de origem romana na planície padana, norte da Itália. Crédito: Museu Aldo Rossi

Por outro lado, o que o urbanista italiano Bernardo Secchi entende por “cidade difusa” (fig. 3) é um processo de consolidação de tecidos urbanos, que não pode ser necessariamente previsto. Essa constatação pode contribuir para se compreender sua efetiva finalidade, ou seja, se esta seria chegar à configuração de uma cidade tradicional adensada. Entretanto, ressaltava-se que, talvez, esse não seja o destino das cidades difusas da atualidade. De qualquer forma, é possível perceber que se trata de um processo de ocupação e organização do território com densidades crescentes muitas vezes.

Em todo caso, pode ser impossível encontrar uma definição suficientemente precisa, estrita e satisfatória para todos os aspectos do que se entende por cidade. Assim, mesmo com densidades crescentes, as cidades são facilmente reconhecíveis como processos de urbanização. Ou seja, qualquer tecido construído existente permite a identificação clara do que é uma zona natural ou rural estável e de quando se observa uma dinâmica de urbanização, mesmo que ainda esteja nos seus estágios mais incipientes de ocupação suburbana ou de formação de um núcleo qualquer.

Anti-urbanismo

Assim, para tentar descrever esse processo de urbanização e inseri-lo dentro de uma lógica legalista ou jurídica moderna, existe uma variedade de estratégias e de modos de pensar a cidade, que vão ser desenvolvidas ao longo do século XX. Muitos deles vão partir de uma rejeição do processo urbanístico, a exemplo de várias teorias do urbanismo modernista, que vão postular que esses processos urbanísticos ou são intrinsecamente viciados e apresentam resultados indesejáveis.

Não se trata de uma teoria modernista no sentido estrito, já que esse tipo de reflexão surge ainda no final do século XVIII por meio de autores como Thomas Jefferson e outros norte-americanos (fig. 4). Eles formulam o conceito da “imoralidade” intrínseca da cidade. A partir do final do século XIX, o processo de urbanização vai ser visto como algo que acaba gerando um adensamento descontrolado inevitavelmente, resultando na degradação da qualidade de vida urbana.

New Harmony, Indiana, Estados Unidos, vista a voo de pássaro por F. Bates, 1838
Figura 4: New Harmony, Indiana, Estados Unidos, vista a voo de pássaro por F. Bates, 1838

Ebenezer Howards, diagrama da cidade-jardim, 1902
Figura 5: Ebenezer Howards, diagrama da cidade-jardim, 1902

Ebenezer Howard apresenta o conceito de “cidade jardim” na virada do século XIX (fig. 5), quando o processo espontâneo de urbanização atinge um ponto de inflexão, a partir do momento em que haveria se descontrolado, precisando ser contido. Isso leva à reflexão sobre os mecanismos modernos de gestão e controle do espaço urbano, ou seja, o que se entende como zoneamento e planejamento urbano atualmente (não enquadrando-se necessariamente na compreensão tradicional de gestão urbana: o estabelecimento de códigos de posturas, por exemplo).

Zoneamento e funcionalismo

Destaca-se que o processo contínuo de urbanização mais tradicional se perpetua até hoje. Isso pode ser observado cotidianamente nas fronteiras de crescimento urbano, principalmente, naquelas menos controladas pelo planejamento institucional (fiscalização, policiamento etc.).

Isso não quer dizer que as cidades tradicionais não apresentem qualquer tipo de zoneamento ou planejamento. A tentativa de controlar a urbanização é quase tão antiga quanto a existência de cidades. Há evidências de certas formas de zoneamento e de mecanismos jurídicos de controle, através dos chamados códigos de posturas ou da regulação de ações de urbanização e de constituição da forma urbana, desde a Grécia, Mesopotâmia, Índia e China antigas, não havendo grande clareza sobre o tema no caso do Egito. Em geral, são ações voltada para fomentar algum tipo de paz social, ou seja, para resolver conflitos entre interesses de diferentes agentes.

Ilustra-se também com o caso do Código de Posturas português, que apresenta as primeiras medidas para garantir a “boa vizinhança” desde o século XIII, tendo boa parte de suas medidas ainda em vigor e chegando inclusive a influenciar o Código Civil brasileiro. Trata-se de um primeiro nível de controle da urbanização, que sempre existiu e que apresenta normas semelhantes na Grécia e Mesopotâmia antigas, na China, etc. Sempre que há uma grande concentração de pessoas desconhecidas, são necessárias leis para disciplinar sua convivência, incluindo a forma como irão construir umas do lado das outras e diante do espaço público.


A partir da segunda metade do século XIX, começam a surgir normas cada vez mais específicas sobre o aproveitamento dos lotes, a relação das construções com os serviços públicos, os parcelamentos e a infraestrutura existentes (abastecimento de água, de eletricidade, coleta de esgoto, etc.), ou seja, tudo que precisa prever e controlar a densidade da construção e a quantidade de demanda por determinados serviços de alguma maneira. Isso acaba levando aos processos de planejamento urbano e zoneamento modernos.

Léon Krier, alegoria do zoneamento funcionalista
Figura 6: Léon Krier, alegoria do zoneamento funcionalista

Transecto urbano, por Duany, Plater-Zyberk & Co.
Figura 7: Transecto urbano, por Duany, Plater-Zyberk & Co.

Novo Urbanismo é um movimento fundado, entre outros, pela equipe de arquitetos pós-modernistas do escritório norte-americano Duany, Plater-Zyberk & Co. 

Surge a partir das limitações do zoneamento moderno, devido à complexidade da gestão da infraestrutura e de serviços urbanos, que inviabiliza o retorno a um modo mais simples e minimalista de manejo de conflitos. Torna-se necessário para realizar um plano de zoneamento ou plano diretor, que configure uma cidade tradicional e, principalmente, um processo de urbanização tradicional.


Então, concebem o conceito de “transecto” (fig. 7), originário de uma base geográfica venerável concebida pelo geógrafo alemão Alexander von Humboldt, que representa uma sucessão de ecossistemas que se transformam gradualmente uns nos outros (fig. 8). Espelham-se na conformação de qualquer terreno natural em grande escala, que apresentem transições suaves entre cada ecossistema. Utilizam essas noções como uma forma de descrever e planejar um processo de urbanização, que também apresente esse característica mais gradual.

Transecto natural, por DPZ
Figura 8: Transecto natural, por DPZ

Transecto urbano, baseado em DPZ
Figura 9: Transecto urbano, baseado em DPZ

Trata-se, entretanto, de uma tentativa bastante questionável sob certos aspectos, principalmente, por fomentar zoneamentos que, na verdade, levam a “congelamentos”. Nessa perspectiva, reforça a lógica moderna de urbanização pautada na negação de sua visão como processo e baseada em sua concepção como produto fixo. Nessa última forma, a cidade seria, então, marcada pela criação de uma coleção desses produtos, estando cada um em seu setor morfológico e na sua zona de densidade (fig. 9).

Arquitetura urbana

Tais conceitos despertam maior interessante, na verdade, para descrever esse processo de urbanização, não consistindo em uma solução efetiva para o problema de o urbanismo moderno ser uma negação de tais processos necessariamente. Seria, assim, uma resposta muito característica de economias altamente desenvolvidas e concentradas a essas questões. A exemplo dos Estados Unidos e da Europa (em menor escala), onde um número cada vez menor de grandes atores vai controlar determinados mercados, principalmente, o da construção (como observado nos grandes empreendimentos imobiliários norte-americanos).

Essas características também surgem no Brasil, sendo dirigidas pelo Estado inicialmente, com seus grandes projetos de habitação social a partir da década de 1940. Nas últimas três décadas, manifesta-se nas grandes operações urbanas consorciadas ou não, nas PPP - Parcerias Público-Privadas ou em investimentos essencialmente privados. Eles geram grandes unidades e produtos mais ou menos fechados, que darão um retorno específico até determinada data, quando o projeto passa a ser considerado concluído. Entretanto, considerando as características socioeconômicas brasileiras, observa-se ainda uma grande produção informal do espaço urbano, que nada mais é do que o próprio processo de urbanização tradicional.

Muitas vezes, isso pode ser caracterizado de forma negativa em discursos institucionais de arquitetos. Tal postura é justificada pelo forte condicionamento da profissão ver a si mesma como organizadora e planejadora de tudo o que diz respeito ao ambiente construído, desde a construção de edifícios singulares até o planejamento do próprio conjunto territorial urbano nos quais serão implantados. Assim, os arquitetos tendem a pensar que tudo aquilo que não resulta de um planejamento centralizado é necessariamente ruim e que toda urbanização informal é um problema a ser resolvido, corrigido, disciplinado, controlado e, eventualmente, até erradicado. Há 20 anos, muitos arquitetos (que se diziam progressistas) falavam em eliminar favelas e realocar suas populações em projetos de habitação de interesse social devidamente planejadas e setorizados. Posteriormente, essas mesmas pessoas taxaram projetos com essas característica de horrorosos, distantes de tudo, sem infraestrutura e sem nenhum tipo de apoio à identidade comunitária dos grupos locais.

Essa concepção já não é mais tão comum atualmente, ainda que a maioria dos arquitetos continue considerando que o problema das favelas é ausência de serviços públicos e de planejamento (abertura de vias, espaços públicos ou controle sobre a propriedade do solo ou sobre processos construtivos, gabaritos ou falta de legalidade nas construções não aprovadas institucionalmente). Eles acabam confundindo âmbitos e escalas diferentes de intervenção com esse discurso, pois uma coisa é um grande empreendedor imobiliário desconsiderar parâmetros de segurança; outra coisa é a implantação de um processo gradual de consolidação de um tecido urbanístico (envolvendo ou não certas formas construtivas específicas), mantendo margens de segurança muito maiores para as construções. Essa é uma consequência de seu funcionamento em pequena escala, que ajuda a compreender como o conjunto do processo de urbanização está funcionando no tempo e no espaço.


Léon Krier, ajuste da arquitetura urbana, 2003
Figura 10: Léon Krier, ajuste da arquitetura urbana, 2003

O nosso já conhecido Léon Krier descreve as formas urbanas numa matriz que vai de tipos clássicos/eruditos extremamente organizados, controlados e formalizados no âmbito urbano e arquitetônico (centro do gráfico) até aqueles mais espontâneos e orgânicos, resultantes de uma grande quantidade de decisões políticas e econômicas essencialmente por parte de uma grande variedade de agentes privados (fig. 10). Ressalvamos a presença do Estado e certas pretensões estéticas e da importância de determinados agentes. A maioria das cidades tradicionais, mesmo as mais importantes em tamanho e poder político e econômico, tendem a seguir esse último exemplo: a construção de arquiteturas populares e eruditas com um traçado urbano mais espontâneo, menos controlado ou planejado de maneira central.

  • Lugar tem precedência sobre o tempo
  • Parataxis

Toda cidade é vernácula

Fala-se que todos os processos de urbanização são tradicionais, pois nunca deixaram de estar em vigor, configurando-se como respostas econômicas ao fato de que as pessoas tendem a se concentrar em cidades, quando a sociedade é organizada de modo a permitir sustentá-las e promovê-las. Então, surge gradualmente esse processo de ocupação mais adensada, com os indivíduos reivindicando seu quinhão de lugar para construir, habitando essas edificações e transformando o tecido construído de acordo com suas necessidades ao longo do tempo: expandindo, ampliando, reformando, adensando. Todas essas são respostas, muitas vezes descentralizadas, a demandas essencialmente econômicas, comumente observadas ao longo da história da humanidade: habitação, aluguel ou venda de imóveis, comércio, etc.


Léon Krier, equilíbrio público/privado, 2003
Figura 11: Léon Krier, equilíbrio público/privado, 2003

Surge uma certa complexidade na medida em que a escala de poder econômico e de capacidade construtiva tende a aumentar a partir da industrialização das sociedades. Isso leva a uma distorção do processo de urbanização, no qual reutilizar o que já existe e expandir em cima dele é a maneira mais racional economicamente de fazer as coisas. Cria-se, assim, uma outra forma de construir a cidade, na qual a lógica de concebê-la como produto é aplicada em sua maior extensão. Portanto, um pedaço de terra/solo passa a ter valor na medida em que permite a construção de grandes empreendimentos e a extração de algum retorno sobre esse investimento, podendo ser este estritamente econômico, como no caso do Porto Maravilha no Rio de Janeiro-RJ. Assim, trata-se tanto de um produto econômico para as empresas que irão construí-los, quanto de um produto político para quem prometeu realizá-los, transformando a cidade em um produto geral e não mais em um processo contínuo. Adverte-se que tal processo de urbanização não concentra de maneira tangível esses benefícios e, portanto, a tendência é negá-los sempre que existem grupos de interesse político ou econômico presentes.

Três elementos da forma urbana

Reforça-se também que esse processo de urbanização é produzido a partir de tudo aquilo que pode ser trabalhado de modo incremental, passa a passo, gradual e descentralizado. Nele são encontrados basicamente três elementos que vão constituir sucessivamente a cidade:

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Traçado

Trata-se da forma e da posição de suas ruas e praças, configurando-se como o elemento mais suscetível ao controle sem grandes choques contra a lógica do processo gradual e descentralizado da urbanização. Pode-se ter traçados pré-determinados que, posteriormente, irão dar toda a liberdade para os agentes particulares fomentarem sua urbanização de maneira menos controlada. Também são possíveis aqueles, que vão se formando à medida em que os agentes individuais vão contribuindo para a construção e o adensamento da cidade.

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Parcelamento do solo

Aradicionalmente, refere-se a tudo o que não é espaço público (rua ou praça) e configura-se como lote de certo modo, indo de uma grande gleba rural a um lote urbano mínimo. De qualquer forma, trata-se da propriedade de alguém que pode ser o Estado ou um agente privado (na maioria dos casos). E o que dá dinamismo à urbanização é, sobretudo, a fragmentação da propriedade do solo, reduzindo a possibilidade de tratar qualquer investimento realizado ali como algo que resultará em um produto e não como consequência de um processo ao longo do tempo. Não se trata de considerar um imóvel como produto no momento apenas de sua produção para aluguel ou venda, por exemplo, já que o ciclo de vida de uma construção urbana vai muito além, passando por diversos outros papeis e funcionamentos. Poderia configurar-se como um produto para uma empresa, um ativo ou reserva de valor para um indivíduo ou uma garantia de status social e meios econômicos para outro, sendo diferente de se pensar em uma cidade inteira como produto que vai se esgotar no seu retorno de investimento programado.

. . .

Construção

A ser realizada no lote.

Tipos de urbanização

Existem cinco tipos de urbanização atestados em todas as culturas ao longo da história. Tais formações não são necessariamente exclusivas, podendo haver combinações entre elas e aplicações em diferentes escalas urbanas.

  • Cidadela
  • Aldeia–rua
  • Castrense ou wangcheng 王城
  • Kampong
  • Cidade difusa

Cidadela


Léon Krier, modos suburbano e urbano de definição de limites
Figura 12: Léon Krier, modos suburbano e urbano de definição de limites

Origina-se da formação de um recinto ou perímetro protegido, que sendo gradualmente preenchido internamente (fig. 12).


Muitas cidades tradicionais vão seguir essa forma, tanto na escala do tecido urbano como um todo, por exemplo, a partir de uma muralha circundante com a paulatina ocupação de seu interior; ou na escala mais específica de um distrito ou de um trecho de território que está sendo ocupado, partindo de um adensamento que tende a crescer para dentro e deixando um miolo vazado, ou seja, um espaço no meio (pátio, praça ou malha viária) que será respeitado durante esse preenchimento até atingir uma forma mais compacta (figs. 13, 14). Tal crescimento não ocorre em um sentido cronológico estrito, no qual a última coisa a ser definida seria o espaço interno, já que essa poderia ser a primeira a ser estabelecida em muitos casos.


Cidadela de Micenas, Grécia heládica (Idade do Bronze), c. 1250 a.C.
Figura 13: Cidadela de Micenas, Grécia heládica (Idade do Bronze), c. 1250 a.C.

Planta da cidadela de Tirinto, Grécia heládica, baseada nas escavações de Heinrich Schliemann em 1884. Desenho: Wilhelm Dörpfeld
Figura 14: Planta da cidadela de Tirinto, Grécia heládica, baseada nas escavações de Heinrich Schliemann em 1884. Desenho: Wilhelm Dörpfeld

Aldeia–rua

Trata-se, possivelmente, da forma de urbanização mais simples, evidente e difundida em todos os processos de crescimento relativamente espontâneos do mundo. Quase tudo o que se vê acerca do crescimento suburbano espontâneo feito pedaço por pedaço através de diferentes agentes e construtores (proprietários ou ocupantes), principalmente, tende a seguir essa lógica em geral.


Daniel-Charles Trudaine, coordenador, Atlas das estradas da França dito Atlas Trudaine, 1745–1780. Volume da circunscrição de Ruão, fl. 17, Le Vaudreuil. Arquivo Nacional da França cota CP/F/14/8502
Figura 15: Daniel-Charles Trudaine, coordenador, Atlas das estradas da França dito Atlas Trudaine, 1745–1780. Volume da circunscrição de Ruão, fl. 17, Le Vaudreuil. Arquivo Nacional da França cota CP/F/14/8502

Isso é visto negativamente pela teoria do urbanismo modernista geralmente, pois ela não está preocupada com o processo, mas sim com a imagem de um produto fixo e finalizado. Por essa razão, esse é o processo de urbanização por excelência na maior parte do mundo e da história da humanidade. Começa com uma subdivisão inicial por meio da formação de um traçado estruturante (fig. 15), a ocupação deste com o parcelamento do solo e vai se consolidando com o adensamento do espaço que está atrás desse traçado, em geral, pela abertura de ruas secundárias (a “rua de trás”), ligadas entre si por “travessas”. Estão muito presentes em todos os lugares, inclusive, na tradição urbanística luso-brasileira, apresentando uma longa e venerável genealogia, continuando em vigor de certo modo até hoje.


Burton-upon-Trent, Inglaterra, burgage plots medievais no levantamento cartográfico de 1760
Figura 16: Burton-upon-Trent, Inglaterra, burgage plots medievais no levantamento cartográfico de 1760

No Distrito Federal, pode ser encontrada no Céu Azul, na Cidade Ocidental (onde a estrada vai sendo urbanizada), a via principal do Grande Colorado, a pista do Jardim Botânico (na qual a rua vem antes dos condomínios, como na maioria dos casos) e grande parte dos assentamentos informais como a Cidade Estrutural e o Sol Nascente. Falar-se em urbanização informal não quer dizer, necessariamente, que não tenha apresentado algum tipo planejamento em certa medida, como observado no caso dos condomínios do Park Way e de Vicente Pires (com a ressalva de terem ruas muito curtas ou pequenos becos, resultantes da pequena extensão de suas glebas ou de originarem-se de um grande lote reparcelado).


Seriam uma espécie de meio termo entre a lógica do processo de urbanização e a do produto, funcionando em grande escala através da produção de pequenos produtos que não se integram. Uma de suas características mais marcantes é o formato mais alongado dos lotes. São diferente das cidadelas, por exemplo, que não apresentam uma forma preferencial para eles, mas construções e parcelamentos relativamente rasos e largos, para garantir uma ocupação mais compacta e vantajosa para os proprietários ou construtores. Ao contrário, nas aldeias-rua existe uma série de empreendimentos econômicos, sendo encontradas, sobretudo, onde a propriedade do solo passa a ser um ativo econômico, ou seja, um lugar capaz de gerar renda e não apenas oferecer moradia. Assim, torna-se muito vantajoso para quem empreende (parcela e constrói) e para quem irá usufruir como inquilino, comprador ou usuário desses edifícios, pois maximiza a exposição à rua para um maior número de pessoas (fig. 17).

Birmingham, Inglaterra, segundo o levantamento de 1731 por William Westley
Figura 17: Birmingham, Inglaterra, segundo o levantamento de 1731 por William Westley

Plano castrense


Planta da cidade de Mileto, Ásia menor grega, replanejada no século V a.C.
Figura 18: Planta da cidade de Mileto, Ásia menor grega, replanejada no século V a.C.

O nome “plano castrense” remete ao castrum, o acampamento militar romano com malha em xadrez estrita. No entanto, esse tipo de urbanização está longe de ser exclusividade da cultura imperial romana, e sequer foi inventado pelos romanos. Ele aparece muito antes, na Grécia do século V a.C., nos planos chamados hipodâmicos. Esse nome é uma referência ao arquiteto Hipódamo de Mileto, que divulgou e popularizou o uso da planta em retícula que já tinha sido usada na sua cidade (fig. 18).

Surge muito anteriormente e em vários outros lugares. Pode apresentar um traçado viário geometricamente demarcado e, ainda assim, ser preenchido por um processo de urbanização, a exemplo de Priene, uma cidade grega localizada na Ásia Menor. Nela, observa-se um traçado teórico, mas a cidade vai sendo ocupada onde há interesse em gerar uma malha urbana. Transforma-se, assim, de um xadrez totalmente indiferenciado a uma aldeia–rua, que tem essa forma em grelha porque o traçado das vias está pré-definido, mas a cidade só cresce ao longo dos eixos principais de fato.


O uso da malha viária em retícula se generaliza na Grécia do período Helenístico. Em Priene (fig. 19), a rigidez do plano desconsidera até a forte inclinação do terreno. Essa escolha cria condições particulares de inclinação dos lotes e tem impacto no custo das construções.

Priene, cidade grega na Ásia menor. Reconstituição por Rocío Espín Piñar
Figura 19: Priene, cidade grega na Ásia menor. Reconstituição por Rocío Espín Piñar

Planta reconstituída do castrum (forte romano) permanente de Iciniacum, próximo a Theilenhofen, atual Alemanha. Desenho: Mediatus
Figura 20: Planta reconstituída do castrum (forte romano) permanente de Iciniacum, próximo a Theilenhofen, atual Alemanha. Desenho: Mediatus

Essa lógica expande-se para qualquer tipo de traçado urbanístico com um desenho de conjunto estritamente controlado, porém cada um terá sua propriedade do solo (lotes) para construir em cima dele. Destaca-se, por fim, que a densidade e o processo de ocupação irão variar ao longo do tempo.



Acampamento militar temporário de uma legião romana
Figura 21: Acampamento militar temporário de uma legião romana

Argentorate, forte romano permanente, atual Estrasburgo, França. Reconstituição: Jean-Claude Golvin
Figura 22: Argentorate, forte romano permanente, atual Estrasburgo, França. Reconstituição: Jean-Claude Golvin

Ammaia, Lusitânia romana
Figura 23: Ammaia, Lusitânia romana

Reconstituição de Ammaia
Figura 24: Reconstituição de Ammaia

Esquema da centuriação romana
Figura 25: Esquema da centuriação romana

Ager centuriatus romano
Figura 26: Ager centuriatus romano


Remanescentes da centuriação romana na planície Padana, norte da Itália. Foto de satélite do acervo do Museo della Centuriazione Romana
Figura 27: Remanescentes da centuriação romana na planície Padana, norte da Itália. Foto de satélite do acervo do Museo della Centuriazione Romana

Cidade romana de Lambaesis, na atual Argélia. Desenho por Jean-Claude Golvin
Figura 28: Cidade romana de Lambaesis, na atual Argélia. Desenho por Jean-Claude Golvin

Um exemplo muito conhecido é o xadrez das cidades chinesas, que aparece muitos anos antes do Império Romano, sendo uma das características mais icônicas do urbanismo chinês (fig. 29).

Wangcheng, Kaogongji, Zhouli, xilografia século IX a partir de um original do século V a.C.
Figura 29: Wangcheng, Kaogongji, Zhouli, xilografia século IX a partir de um original do século V a.C.

Módulos urbanísticos da cidade ideal chinesa. Wang Weijen, 2010
Figura 30: Módulos urbanísticos da cidade ideal chinesa. Wang Weijen, 2010

Kampong

No Sudeste asiático, a matriz geradora do urbanismo é o kampung: uma gleba agrícola e residencial associada a uma família estendida ou a uma pequena comunidade política. As principais cidades mercantes se formam pelo adensamento gradual de vários kampung ao longo de caminhos estruturantes e à volta de templos e palácios fortificados (fig. 31). Este é um termo originário do Sudeste asiático (malaio e indonésio), mas serve para descrever formas urbanas em todo o mundo. Pode ser entendido como o inverso da cidadela, sendo que, ao invés de se preencher internamente um limite, ele vai crescendo em todas as direções a partir de um núcleo, que poderia ser uma rua, um palácio, uma edificação ou uma plantação comunitária.


Figura 31: Kampung em Bali, Indonésia. Produção: OmniHour, 2019.

Ele se desenvolve através da expansão, não longo de um traçado como na aldeia-rua ou por subdivisão de lotes, mas pela simples ocupação do espaço disponível. Não há a necessidade de um parcelamento do solo anterior, pois este se torna uma consequência do processo de construção. Pode ser visto como uma forma que vagamente lembra o urbanismo modernista, por não apresentar um traçado viário e um parcelamento do solo claramente legíveis, entretanto, sem a necessidade de fixar a posição de tudo no desenho. Aqui, não existem lotes, pois a possibilidade de transformação é quase infinita, podendo-se construir em praticamente qualquer lugar. É característica de ocupações predominantemente rurais e familiares, coletivas, muito voltadas para respostas a condições climáticas específicas, que demandam baixa concentração de edificações para uma ventilação ampla.


Os reinos do Sudeste asiático se destacam pela sua diversidade étnica e religiosa. Os impérios hindu-budistas de Srivijaya e Majapahit (figs. 32, 33) controlam o comércio marítimo de especiarias e as exportações chinesas para o Ocidente. Assim, Trowulan se torna um centro de poder econômico e político muito próspero. Mas, acima de tudo, as cidades malaias demonstram modos de organizar o espaço urbano e de construir perfeitamente adaptados ao clima equatorial.

Império de Srivijaya, séculos VIII e IX. Mapa: Gunawan Kartapranata, 2009
Figura 32: Império de Srivijaya, séculos VIII e IX. Mapa: Gunawan Kartapranata, 2009

Nusantara (arquipélago indonésio) no auge do império Majapahit, século XIV. Mapa: Gunawan Kartapranata, 2009
Figura 33: Nusantara (arquipélago indonésio) no auge do império Majapahit, século XIV. Mapa: Gunawan Kartapranata, 2009

Caracterizar a urbanização malaia esbarra no problema do vocabulário que se usa para definir e descrever o que é “urbano”. Até a segunda metade do século XX, estava mais ou menos entendido que uma civilização que se preze devia ter cidades — e só contam como cidades os grandes assentamentos muito densos encontrados na Europa, no mundo Árabe, na Índia e no “extremo Oriente”.


O kampung é muito diferente do paradigma urbanístico chinês e europeu, de grandes cidades com um sistema cartorial de propriedade do solo e uma distinção nítida entre espaço público e espaço privado. Essa diferença já aparecia desde o século XV, com o assentamento dos primeiros comerciantes chineses no Sudeste asiático, e mais ainda entre os séculos XVII e XIX, quando os colonizadores europeus segregaram as cidades malaias em bairros ocidentais, chineses e “nativos” (fig. 34).

Mapa da cidade de Cingapura G.D. Coleman, 1839
Figura 34: Mapa da cidade de Cingapura G.D. Coleman, 1839

Hans-Dieter Evers
Figura 35: Hans-Dieter Evers

Com base nas diferenças urbanísticas, os chineses e sobretudo os britânicos consideravam o kampung malaio como primitivo ou inferior. Foi só no final da década de 1970 que o urbanista alemão Hans-Dieter Evers (fig. 35) apresentou, na bibliografia ocidental, o urbanismo malaio como um paradigma alternativo ao do urbanismo chinês, e igualmente legítimo.


Arrozal em terraços em Batad, Banaue, Filipinas Foto: Uwe Aranas, 2008
Figura 36: Arrozal em terraços em Batad, Banaue, Filipinas Foto: Uwe Aranas, 2008

Kampung significa “povoado” em malaio e em indonésio. A configuração típica do kampung vem desde as origens da agricultura no Sudeste asiático (fig. 36). O conjunto se organiza em torno de um caminho estruturante ou de um ponto focal importante, como um templo, uma mesquita ou um complexo palaciano.


O kampung resulta diretamente da distribuição dos arrozais num grupo comunitário e da sucessão familiar sem partilha da terra. Como as terras são sempre propriedade coletiva de famílias estendidas, elas não se dividem em lotes menores e mais estreitos ao longo das gerações, como aconteceria no leste da Ásia e na Europa.Mohd Sahabuddin, “The Establishment of ‘Air House’ Standard in Tropical Countries : Part 2”.


Além disso, Evers mostrou que as divisas geométricas entre glebas do kampung são pouco importantes, em comparação com o uso dos espaços e dos recursos tangíveis.Evers, “The Culture of Malaysian Urbanization”.

O critério mais relevante de organização do espaço é as redes de parentesco, que determinam a localização de casas principais e secundárias e o acesso a hortas e plantações (fig. 37). À medida que a população da comunidade cresce, cada casa pode ser ampliada segundo um sistema de ambientes modulares (fig. 38).Lim, The Malay House; ap. Beng, Hamid, e Hung, “Unleashing the Potential of Traditional Construction Technique in the Development of Modern Urban Mass Housing”.

Esquema de um kampung rural simples. Desenho reproduzido em Mohd Sahabuddin, 2012
Figura 37: Esquema de um kampung rural simples. Desenho reproduzido em Mohd Sahabuddin, 2012

Sequência tipológica da casa malaia. Lin, 1991, ap. Beng et al., 2015
Figura 38: Sequência tipológica da casa malaia. Lin, 1991, ap. Beng et al., 2015

Do mesmo modo, o kampung como um todo também se adensa até virar um distrito urbano compacto. Esse processo continua na urbanização contemporânea e tem sido um fator de manutenção da identidade regional, como num projeto da década de 1990 para um kampung nas Filipinas pela firma americana Duany, Plater-Zyberk & co (fig. 39).

Kampung contemporâneo nas Filipinas, por Duany, Plater-Zyberk & co., 1997
Figura 39: Kampung contemporâneo nas Filipinas, por Duany, Plater-Zyberk & co., 1997

Rede central de atividades religiosas e políticas em torno de Trowulan, capital do império Majapahit, no século XIV. Hall, 1996, 97
Figura 40: Rede central de atividades religiosas e políticas em torno de Trowulan, capital do império Majapahit, no século XIV. Hall, 1996, 97

Partindo do kampung como unidade social e urbanística de base, os estados malaios organizam o território em redes de poder político e autoridade religiosa (fig. 40). No século XIV, o poder político e religioso no império Majapahit é sinalizado pela construção de um pura ou templo hinduísta.


Pura de Trowulan, século XIV. Hall, 1996, 99
Figura 41: Pura de Trowulan, século XIV. Hall, 1996, 99

No entanto, o pura é mais do que um simples local de culto.Hall, “Ritual Networks and Royal Power in Majapahit Java”.

O recinto retangular funciona também como fortificação, e dentro dela fica, além do templo, o palácio real. Do lado de fora da entrada principal, ao norte, está a praça do mercado. Outras moradias da corte e um mosteiro budista se aglomeram em volta do pura (fig. 41).

Cidade difusa

Bairro e arrabalde

A cidade mediterrânea medieval é um sistema de cidadelas inseridas num traçado estruturante de aldeias–rua.

Traçado estruturante e traçado de implantação


Sítio arqueológico de Kostyonki no vale do rio Don, sudoeste da Rússia, ocupação c. 14.000 a.p. Desenho com base em Jarzombek (2013) e Grigor’ev (1967), curvas de nível a cada 5 metros. Linha tracejada grossa: percurso estruturante de cumeada; linha tracejada fina: percursos de cumeada secundários; linha pontilhada: percurso de contra-cumeada
Figura 42: Sítio arqueológico de Kostyonki no vale do rio Don, sudoeste da Rússia, ocupação c. 14.000 a.p. Desenho com base em Jarzombek (2013) e Grigor’ev (1967), curvas de nível a cada 5 metros. Linha tracejada grossa: percurso estruturante de cumeada; linha tracejada fina: percursos de cumeada secundários; linha pontilhada: percurso de contra-cumeada

Modelo teórico de estabelecimento de traçados estruturantes na Itália da Idade do Bronze, segundo Gianfranco Caniggia e Gian Luigi Maffei
Figura 43: Modelo teórico de estabelecimento de traçados estruturantes na Itália da Idade do Bronze, segundo Gianfranco Caniggia e Gian Luigi Maffei

Interação entre processos espontâneos e planejados de formação de traçados, segundo Caniggia e Maffei
Figura 44: Interação entre processos espontâneos e planejados de formação de traçados, segundo Caniggia e Maffei

Modelo de formação dos tecidos urbanos segundo Gianfranco Caniggia e Gian Luigi Maffei
Figura 45: Modelo de formação dos tecidos urbanos segundo Gianfranco Caniggia e Gian Luigi Maffei

Modelo de ocupação de quarteirão urbano sobre traçado estruturante, de implantação e de ligação, segundo Caniggia e Maffei
Figura 46: Modelo de ocupação de quarteirão urbano sobre traçado estruturante, de implantação e de ligação, segundo Caniggia e Maffei

Narai, Japão, parcelamento edilício de base sobre traçado estruturante, segundo Caniggia e Maffei
Figura 47: Narai, Japão, parcelamento edilício de base sobre traçado estruturante, segundo Caniggia e Maffei

Formação de tecido urbano num arrabalde de Florença, segundo Caniggia e Maffei
Figura 48: Formação de tecido urbano num arrabalde de Florença, segundo Caniggia e Maffei

Urbanização planejada de geometria orgânica: traçados estruturante e de implantação na cidade baixa de Coimbra, século XIV, em mapa de 1934
Figura 49: Urbanização planejada de geometria orgânica: traçados estruturante e de implantação na cidade baixa de Coimbra, século XIV, em mapa de 1934

desenvolvimento do traçado estruturante da aldeia–rua, anterior ao século XIII ruas estruturantes secundárias e traçado de implantação, final do século XIII ocupação das ruas de trás e formação dos quarteirões perimetrais, século XIV abertura dos quarteirões perimetrais com servidões (ruas de ligação), século XV ou anterior

Figura 50: Reconstituição do processo urbanístico de Castelo de Vide, Alentejo


Mousky, Cairo, baseado na planta de Goad, 1905
Figura 51: Mousky, Cairo, baseado na planta de Goad, 1905

Comunidade cristã no arrabalde norte de Alepo, Síria, sob o império Otomano, c. 1900. David, 2008
Figura 52: Comunidade cristã no arrabalde norte de Alepo, Síria, sob o império Otomano, c. 1900. David, 2008

O arrabalde costuma ter um traçado viário radioconcêntrico. A separação de comunidades é menos marcada do que na medina.

Waqf (mãos-mortas) — amortização e desamortização.

Portos do Sael


Impérios do ouro e sal e rotas comerciais na Idade Média. Smithsonian Institution National Museum of African Art, 2020
Figura 53: Impérios do ouro e sal e rotas comerciais na Idade Média. Smithsonian Institution National Museum of African Art, 2020

Delta interior do rio Níger no final da estação das chuvas. Foto do satélite MODIS, NASA, 2001
Figura 54: Delta interior do rio Níger no final da estação das chuvas. Foto do satélite MODIS, NASA, 2001

Império do Mali no final do reinado de Mansa Musa (1337). Mapa: Gabriel Moss, 2016
Figura 55: Império do Mali no final do reinado de Mansa Musa (1337). Mapa: Gabriel Moss, 2016

foto aérea da década de 1950
a
planta por Hakim & Ahmed, 2008
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Figura 56: Zaria, atual Nigéria, agrupamento de complexos domésticos. a – foto aérea da década de 1950, b – planta por Hakim & Ahmed, 2008


Zaria, atual Nigéria, complexo doméstico e percurso de acesso segundo Hakim & Ahmed, 2008
Figura 57: Zaria, atual Nigéria, complexo doméstico e percurso de acesso segundo Hakim & Ahmed, 2008

Rua e praça


Léon Krier, rua de passagem e rua–lugar
Figura 58: Léon Krier, rua de passagem e rua–lugar

Em suma, destacam-se três principais pontos sobre a urbanização tradicional: é um processo e não um produto ou imagem resultante; é baseada em três elementos (traçado viário, parcelamento do solo e edificações).

Parcelamento do solo como matriz

Lote como problema do urbanismo modernista

Com base nesses três elementos tem-se toda a formação de qualquer processo de urbanização na maioria das sociedades. Ressalta-se novamente que o urbanismo moderno é a negação desse processo, resultando no urbanismo modernista, que tenta negar a própria existência dos referidos três elementos.

A teoria do urbanismo modernista, que vai rejeitar essa divisão do espaço urbano, é um dos desdobramentos do urbanismo moderno entendido como um produto fechado. O projeto de Brasília segundo o plano Piloto de Lucio Costa é um exemplo dela, entre outras, já que não pensa na cidade como um processo em constante transformação. Por isso seu plano não previa lotes, pois eles se constituíam em uma oportunidade de transformação urbana. Isso ocorre por eles não serem uma forma fixa de construção, mas um campo de possibilidades que vão se modificando ao longo do tempo. Adota, assim, as lâminas de seis andares sobre pilotis, circundadas por cinturões verdes nas mesmas posições e com as mesmas densidades e proporções entre cheios e vazios permanentemente.

Ao eliminar o lote, retira-se também a clareza do que é espaço público e traçado viário, além da noção do que é público e privado, evitando-se qualquer tipo de sucessão urbanística sem previsão de futuras alterações, apenas manutenção e substituição de peças. Dessa maneira, configura-se como uma forma ideal de cidade modernista, sem preocupação com mecanismos que poderiam permitir transformações posteriores. Trata-se de uma visão fadada ao fracasso, pois não é possível prever o futuro em uma escala temporal milenar quanto a das cidades.


Escalas de parcelamento do solo segundo Philippe Panerai: pequenos lotes urbanos; várias casas num lote; quarteirão inteiro como lote único
Figura 59: Escalas de parcelamento do solo segundo Philippe Panerai: pequenos lotes urbanos; várias casas num lote; quarteirão inteiro como lote único

O objetivo aqui, a partir da noção de história da arquitetura, é pensar nos processos de urbanização, ou seja, como as cidades se consolidaram e transformaram-se ao longo da história, para se perceber que elas sempre vão continuar se modificando. Em vários momentos, elas foram desenhadas com certas formas mais ou menos abertas em mente (fig. 59). Reforça-se que, quanto mais fechadas fossem essas formas, mais fadados ao fracasso estariam seus projetos originais de modo geral, sendo pesadamente submetidos a mudanças.

Transformações do traçado



acima: adição elementar; meio: adição por extensão; abaixo: justaposição
a
acima: sobreposição; meio: sedimentação por deformação; abaixo: sedimentação por regularização
b

Figura 60: Modos de evolução do tecido urbano, segundo Carlos Dias Coelho (2015). a – acima: adição elementar; meio: adição por extensão; abaixo: justaposição, b – acima: sobreposição; meio: sedimentação por deformação; abaixo: sedimentação por regularização

Adição


II Fase, século XIV
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III Fase, século XVI
b

Figura 61: Saverio Muratori, processo de urbanização do bairro Rialto, Veneza. Studi per una operante storia di Venezia, 1959. a – II Fase, século XIV, b – III Fase, século XVI


Justaposição


A justaposição é rara nos tecidos construídos tradicionais. Geralmente, ela ocorre quando há alguma barreira natural impedindo a continuidade do tecido, como um barranco ou um curso d’água, ou ainda quando há uma exigência militar pela manutenção de uma área desimpedida para defesa. As três condições ocorrem juntas na cidade de Carcassonne, no sudoeste da França (fig. 62).

Carcassonne, cidade velha fortificada e bastide (cidade planejada) do século XIV. Reconstituição por Jean-Claude Golvin
Figura 62: Carcassonne, cidade velha fortificada e bastide (cidade planejada) do século XIV. Reconstituição por Jean-Claude Golvin

Sedimentação


Évora, traçado romano sobreposto à planta urbanística atual. Desenho: Pedro P. Palazzo, 2019
Figura 63: Évora, traçado romano sobreposto à planta urbanística atual. Desenho: Pedro P. Palazzo, 2019

Como, Itália, II fase da ocupação romana. Levantamento por Gianfranco Caniggia, 1965
Figura 64: Como, Itália, II fase da ocupação romana. Levantamento por Gianfranco Caniggia, 1965

Fechamento de via com lote na Europa medieval (fig. 64). Também pode ocorrer, inversamente, a abertura de uma via onde antes ficava um espaço cívico cercado, como um fórum, ou mesmo coberto, como um mercado (fig. 65).


Área do campo de Marte em Roma; vermelho: traçado atual; preto: traçado antigo reconstituído
Figura 65: Área do campo de Marte em Roma; vermelho: traçado atual; preto: traçado antigo reconstituído

Sedimentação por desvio das testadas para dentro da caixa da via na China medieval (figs. 66, 67).

Esquema da via imperial numa capital chinesa
Figura 66: Esquema da via imperial numa capital chinesa

Transição do distrito do mercado na dinastia Tang para a rua do mercado na dinastia Song, por meio da construção de lojas permanentes no espaço público das avenidas
Figura 67: Transição do distrito do mercado na dinastia Tang para a rua do mercado na dinastia Song, por meio da construção de lojas permanentes no espaço público das avenidas

Conversão de estruturas temporárias em permanentes: mercados nas cidades chinesas (figs. 68, 69) e europeias.

Esquema de um mercado num dos nove distritos de uma cidade planejada na China da dinastia Tang
Figura 68: Esquema de um mercado num dos nove distritos de uma cidade planejada na China da dinastia Tang
Distrito do mercado oriental em Chang’an durante a dinastia Tang
Figura 69: Distrito do mercado oriental em Chang’an durante a dinastia Tang


Conversão de um temenos (recinto especializado) em tecido urbano mediante sedimentação e sobreposição de novas ruas (fig. 70).

Anfiteatro romano de Florença e tecido urbano resultante
Figura 70: Anfiteatro romano de Florença e tecido urbano resultante

Esquema de um feudo medieval, em William R. Shepherd, Historical Atlas, 1923
Figura 71: Esquema de um feudo medieval, em William R. Shepherd, Historical Atlas, 1923

Boma

Deixando a costa e avançando para oeste, no interior do continente, mas ainda em territórios de etnias banto, o padrão urbanístico dominante se transforma. No lugar de cidades com casas alinhadas, encontramos complexos agropastoris familiares formando redes mais ou menos densas no território.


O arqueólogo americano Thomas Huffman (fig. 73) definiu, nos anos 1980, o paradigma espacial agropastoril banto como um sistema organizado em torno de um cercado comunitário.Huffman, “Broederstroom and the Origins of Cattle-Keeping in Southern Africa”, 7.

Esse cercado, conhecido em suaíle como boma, emerge na Idade do Ferro (c. 500 a.C.) e se declina em inúmeras variações desde a costa do golfo da Guiné até o sul da África.

O boma é, prioritariamente, um curral de gado. Celeiros e espaços para atividades comunitárias também podem estar situados no boma. Ele é controlado por uma liderança política ou chefe de família estendida, que tem a sua própria casa perto desse espaço central.

Esquema teórico de um boma no sul da África: Zimbábue. Desenho: Huffman, 2009
Figura 72: Esquema teórico de um boma no sul da África: Zimbábue. Desenho: Huffman, 2009
Thomas Huffman
Figura 73: Thomas Huffman

Entre os bètemmeribè, na África ocidental, o complexo agropastoril é conhecido como tata sombatata significa “casa” e somba é a designação formal desse grupo étnico (o termo bètemmeribè significa “bom construtor”). A sua arquitetura foi documentada pela arqueóloga americana Suzanne Blier no final da década de 1980.

Ver também: Trailer do documentário Sur un air de somba

Locação na região fronteiriça entre Togo e Benin. Mapa: Pedro P. Palazzo, 2020
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Planta. Desenho em Kathleen James-Chakraborty, 2014, baseado em Suzanne Blier, 1994
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Vista exterior. Foto: Jacques Taberlet, 2008
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Figura 74: Tata somba. a – Locação na região fronteiriça entre Togo e Benin. Mapa: Pedro P. Palazzo, 2020, b – Planta. Desenho em Kathleen James-Chakraborty, 2014, baseado em Suzanne Blier, 1994, c – Vista exterior. Foto: Jacques Taberlet, 2008

Redes políticas no território: grande Zimbábue


Boma de uMgungundlovu, Dingane, reino Zulu, 1829
Figura 75: Boma de uMgungundlovu, Dingane, reino Zulu, 1829

O sistema espacial do boma é a unidade mínima de estratificação familiar e social nas regiões banto. A partir dele, podem ser formadas redes extensas de relações políticas que controlam territórios mais vastos, como era o caso do reino Zulu no século XIX. A sua capital, Dingane, chegou a ter 7000 habitantes com um cercado vasto (fig. 75). Esse espaço interior continha uma praça de armas vasta (ikhanda) além dos currais de gado.


O grande Zimbábue (fig. 76) é uma rede territorial que floresceu entre os séculos XI e XV. Essa rede tinha importância estratégica no comércio suaíle, porque controlava as minas de ouro no sul da África. O conjunto é extenso e era densamente povoado: ocupa uma superfície de 730 hectares e pode ter abrigado até dez mil habitantes no seu auge.

O grande Zimbábue se configura como um conjunto de bomas construídos em pedra; as relações espaciais entre os complexos murados parecem semelhantes às relações que se estabelecem dentro de cada sistema boma. A cidadela maior, com muralhas de 11 metros de altura, se situa na cabeceira da rede, e não no centro — a mesma situação da casa dominante num boma individual.

Vista aérea do Zimbábue. Foto: Janice Bell, 2015
Figura 76: Vista aérea do Zimbábue. Foto: Janice Bell, 2015

Adensamento do boma e malha viária


O traçado estruturante de um caminho é a base para a formação do tecido construído na aldeia–rua da bacia do Mediterrâneo. Já no caso do boma, é o adensamento do sistema edificado que causa a formação dos caminhos. À medida que as comunidades baseadas no boma se tornam mais numerosas e ocupam o território com maior densidade, os cercados se aproximam de formas retangulares. O espaço entre eles começa, então, a tomar a forma de rua–corredor.

Vista aérea de Niamey, Chade. Foto: Walter Mittelholzer, 1930, arquivo da Escola Politécnica Federal de Zurique
Figura 77: Vista aérea de Niamey, Chade. Foto: Walter Mittelholzer, 1930, arquivo da Escola Politécnica Federal de Zurique

Bibliografia

Beng, Gan Hock, Zuhairi Abd Hamid, e Foo Chee Hung. “Unleashing the Potential of Traditional Construction Technique in the Development of Modern Urban Mass Housing”. Malaysian Construction Research Journal 16, nº 1 (junho de 2015): 59–75.
Evers, Hans-Dieter. “The Culture of Malaysian Urbanization: Malay and Chinese Conceptions of Space”. Urban Anthropology 6, nº 3 (1977): 205–16. https://www.jstor.org/stable/40552862.
Hall, Kenneth. “Ritual Networks and Royal Power in Majapahit Java”. Archipel 52, nº 1 (1996): 95–118. https://doi.org/10.3406/arch.1996.3357.
Huffman, Thomas N. “Broederstroom and the Origins of Cattle-Keeping in Southern Africa”. African Studies 49, nº 2 (1º de janeiro de 1990): 1–12. https://doi.org/10.1080/00020189008707724.
Lim, Jee Yuan. The Malay House: Rediscovering Malaysia’s Indigenous Shelter System. Pinang: Institut Masyarakat : Central Books, 1991.
Mohd Sahabuddin, Mohd Firrdhaus. “The Establishment of ‘Air House’ Standard in Tropical Countries : Part 2”. Firrbudi Aka Lensahijau (blog), 18 de outubro de 2012. http://lensahijau.blogspot.com/2012/10/the-establishment-of-air-house-standard.html.

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