Materiais da construção tradicional
Os mitos de origem exercem uma atração especial sobre as teorias da arquitetura. A visão de mundo na qual os primórdios de algum modo explicam, e por que não justificam, o desenvolvimento histórico da cultura é recorrente não só em sociedades tradicionais, mas inclusive em movimentos intelectuais modernos como o Iluminismo e o Romantismo. É essa premissa que está por trás da série de pinturas Decurso do império, que Thomas Cole, um artista romântico americano, realizou na década de 1830. Essa série começa retratando uma comunidade de caçadores-coletores que vivem em tendas (fig. 1); a premissa da sequência é a de que os estágios sucessivos estão predestinados na origem da civilização.


O contato com a Natureza justifica a racionalidade da técnica em particular e a autenticidade das práticas sociais em geral, como na cena pastoral da nossa já conhecida série de pinturas de Thomas Cole (fig. 2) que trata do Decurso do império. O monumento megalítico no promontório reúne duas credenciais que descrevem a essência da cultura humana: o uso individual da razão, que concebe o uso eficiente dos materiais de construção, e a convenção social da religião organizada, que permite reunir o esforço coletivo necessário à execução da obra.
Nos tratados de arquitetura que se servem desses mitos de origem, os materiais e sistemas construtivos aparecem muitas vezes como alegorias da condição humana em geral e do ofício da arquitetura em particular. A precedência de certos tipos de abrigos primitivos sobre outros, no tempo ou na complexidade técnica, também serve para justificar alguma taxonomia da arquitetura. Vamos adotar aqui uma taxonomia simples, baseada em dois sistemas predominantes nas construções duráveis: o esqueleto em madeira e as paredes em alvenaria. Para isso, temos que discutir, primeiro, a legitimidade de classificar a arquitetura tradicional no seu conjunto, e depois explicar por que esses dois sistemas — esqueleto e parede — são um critério válido para fazer essa classificação.
A premissa de que existe uma sequência no desenvolvimento da arquitetura, e uma sequência que, se não é predestinada, pelo menos tem alguma lógica interna, é um assunto espinhoso na nossa disciplina. Por um lado, essa é uma premissa de várias narrativas que justificam o modernismo como resultado inevitável do progresso da técnica; nesse discurso, a catedral moderna do Rio de Janeiro, projetada por Edgar da Fonseca e Paulo Maier em 1979 (fig. 3), pode ser considerada a sucessora natural da Sé tradicional (a primeira de várias) construída entre 1568 e 1583 (fig. 4).


![Martin Hilbert, esquema do “progresso” tecnológico humano. Curso Digital Technology and Social Change, Universidade da Califórnia, [s.d.]](https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/5/5f/Long_Waves_of_Social_Evolution.jpg/1280px-Long_Waves_of_Social_Evolution.jpg)
Por outro lado, desde a metade do século XX o consenso antropológico é o de que as diversas culturas tradicionais são irredutíveis entre si. Desse ponto de vista, não seria possível ou correto supor nenhuma lógica de conjunto, sob pena de impor uma interpretação colonialista sobre sociedades diversas. De fato, não existe um progresso linear (fig. 5) que conduza necessariamente das origens primitivas da humanidade às sociedades que antigamente eram chamadas de civilizadas.
Por isso, a regra geral que podemos usar para uma taxonomia da arquitetura tradicional não diz respeito a pretensos estágios de desenvolvimento técnico ou estético das construções, apesar de que essa interpretação equivocada persiste na cultura popular (fig. 6). Em vez disso, vamos partir da definição que já estabelecemos antes sobre o processo produtivo da construção. Essa definição diz que a arquitetura tradicional se caracteriza pelo uso dos materiais disponíveis na sua região, processados segundo técnicas em grande parte dominadas pela cadeia produtiva local. Um certo universo de recursos naturais, organizações socioeconômicas e tecnologias se articula em culturas construtivas infinitamente diversas.


Então, o nosso problema é saber como classificar essa diversidade infinita numa taxonomia que, ao mesmo tempo, não seja determinista ou colonialista, mas que ainda assim nos dê um esquema suficientemente claro e simples para o nosso estudo da arquitetura tradicional. A solução para esse problema está no ponto de partida de qualquer cadeia produtiva: os recursos naturais disponíveis, ou seja, aqueles que estão ao alcance geográfico, técnico e econômico de uma determinada sociedade (fig. 7).
Arquitetura comparada
O estudo da arquitetura tradicional começa necessariamente pelo estudo dos materiais de construção que cada cultura tem ao seu alcance. Esse estudo forma a base daquilo que tem sido chamado, desde o século XIX, de arquitetura comparada.

A abordagem comparativa foi usada, por exemplo, na História da
arquitetura de Banister Fletcher,Fletcher e Fletcher, A History of
Architecture.
desde a sua primeira edição em 1896 (fig. 8). A
arquitetura comparada ficou com má fama por causa do viés eurocêntrico
da época. No entanto, esse viés não é intrínseco ao método; na
sequência, vamos partir dos materiais de construção como a primeira
condicionante que nos permite classificar e comparar tradições
construtivas diversas.
Podemos começar com os registros escritos que algumas tradições arquitetônicas deixaram para trás. Nesses registros, alguns aspectos comparáveis da construção ficam evidentes.
A ordem em que os materiais são apresentados nos tratados de
arquitetura é sistemática. Ela tende a seguir uma sequência lógica dos
sistemas construtivos usados no processo de construção. A mesma ordem é
usada tanto no Yingzao fashi (fig. 9), um manual técnico e
administrativo chinês do século XI,Liang, A Pictorial History of Chinese
Architecture.
e na maioria dos tratados do Renascimento italiano
nos séculos XV e XVI: eles começam com as fundações, seguem para
as estruturas em madeira, e daí para alvenarias e acabamentos.


O dimensionamento dos componentes construtivos tradicionais é sempre limitado pelas características da matéria-prima, mas também pela capacidade de manipulação e transporte ao longo da cadeia produtiva. As maiores árvores que existem dão o limite de tamanho dos pilares e vigas em madeira, como no salão principal do Chion-in, um templo budista japonês que tem caibros feitos de troncos de árvores partidos ao meio (fig. 10); a viabilidade econômica e técnica do transporte — as estradas, os veículos e os guindastes — determinam as maiores pedras que podem ser cortadas para a construção; a força de trabalho estabelece o volume de taipa que pode ser comprimido antes que cada camada seque. A variedade de condições técnicas e econômicas multiplica a diversidade de linguagens arquitetônicas tradicionais.
Paradigmas construtivos
Reconhecendo essa diversidade de aplicações dos materiais, podemos agrupar as tradições arquitetônicas em três tipos genéricos de acordo com o sistema estrutural dominante que resulta desses materiais e das tecnologias usadas:
Tendas
Estruturas tensionadas, com peles ou tecidos estendidos sobre armações leves.
Cavernas
Estruturas murárias, isto é, paredes portantes maciças com abóbadas.
Cabanas
Estruturas arquitravadas, isto é, que formam pórticos.
- Tendas: Estruturas tensionadas, com
peles ou tecidos estendidos sobre armações leves;
- Cavernas: Estruturas murárias, isto
é, paredes portantes maciças com abóbadas.
- Cabanas: Estruturas arquitravadas,
isto é, que formam pórticos;
Esses tipos foram idealizados por dois arquitetos do final do século
XVIII: o britânico William Chambers
(fig. 11) e o francês Quatremère de Quincy (fig. 12), que também
inventou os nomes alegóricos de tenda, cabana e caverna.Chambers, A Treatise on Civil Architecture;
Quatremère de Quincy, “Caractère”.



A tipologia primordial da tenda, da cabana e da caverna não é literal, e nem estritamente cronológica. A imagem dos homens das cavernas (fig. 13) tem sempre um apelo popular, mas foi relativizada pelo conhecimento científico mais recente: as cavernas não eram exatamente habitações, mas abrigos para algumas atividades, talvez de caráter cerimonial ou religioso.
No esquema mais elaborado de Quatremère de Quincy, cada um dos três tipos corresponde mais a um modo de vida do que a uma progressão no tempo e na técnica: a tenda é a morada dos caçadores-coletores que estabelecem acampamentos provisórios (ver fig. 1); a caverna é a das sociedades pastorais, que procuram abrigos espaçosos para os seus rebanhos (ver fig. 2); por fim, a cabana é a morada das sociedades agrárias e sedentárias, e dá origem às formas mais permanentes e monumentais de arquitetura. Essa classificação, como não poderia deixar de ser, tem um viés eurocêntrico, já que, segundo Vitrúvio, a cabana seria a origem da arquitetura clássica grega. Apesar disso, ela pode ser útil se decantarmos esse viés: em tempo, vamos reformular o argumento de Quatremère para extrair dele uma tipologia aplicável a todas as tradições arquitetônicas sem as hierarquizar.

É bem verdade que os mais antigos vestígios de abrigos feitos por
seres humanos parecem ser alguma forma de tenda: uma armação de
materiais leves apoiados entre si, talvez com folhagens ou peles
estendidas para formar uma camada protetora. O sítio arqueológico de
Terra Amata, no sudeste da França, tem vestígios presumidos de tendas
datadas de até 380 mil anos atrás, que teriam sido erguidas por
Neandertais.De Lumley, “A Paleolithic Camp at
Nice”.
A hipótese de reconstituição desses abrigos
(fig. 14) mostra um sistema muito simples de galhos apoiados nas suas
extremidades. Essa interpretação dos vestígios de Terra Amata é
questionada por alguns arqueólogos.Pettitt, “High Resolution
Neanderthals?”
Outros restos de tendas, desta vez obra de humanos modernos, feitas de ossos e peles de mamutes, datam de cerca de 15 mil anos atrás e foram encontrados em Mezhyrich, na atual Ucrânia (fig. 15). Algumas tendas, como as yurtas da Ásia central (fig. 16), têm uma construção semipermanente. Fora esses casos especiais, a tenda é um tipo predominantemente temporário, e não vai nos ocupar mais neste curso. Nosso percurso segue, portanto, para o tipo da cabana.


Construções semienterradas
As mais antigas habitações permanentes eram contenções em pedra seca contra taludes ou cabanas com o piso parcialmente escavado no solo. Construir dentro da terra é uma das formas mais primordiais de abrigo durável para a humanidade. Além da sensação de proteção e aconchego que se tem num abrigo semienterrado ou adossado, o solo oferece isolamento térmico e abrigo contra o vento.
Na taxonomia da arquitetura tradicional, associamos a construção murária com o caráter da caverna, enquanto a construção arquitravada tem o caráter da cabana (fig. ¿fig:huts?). Essa oposição sinaliza duas relações diferentes entre construção e espaço. A cabana é um paradigma aditivo: a montagem de peças formando um esqueleto estrutural que organiza o espaço indefinido numa malha. Já a caverna é um paradigma subtrativo: os espaços de formas definidas são como que escavados entre as massas de paredes.

Nem sempre essa distinção é tão clara. Um dos mais antigos abrigos
permanentes que se conhece fica no sítio arqueológico de Eynan,
atualmente em Israel (fig. 17). Ele foi construído por volta de 15 a 12
mil anos atrásHaklay e Gopher, “A New Look at Shelter 131/51 in
the Natufian Site of Eynan (Ain-Mallaha), Israel”.
e tem características tanto da cabana quanto da
caverna. Esse abrigo é formado por um muro de contenção em pedra lavrada
que dá abrigo para uma cabana de planta circular encaixada contra a
encosta.
No noroeste da península Arábica, um conjunto curioso de cercados
retangulares foi construído a partir do VI milênio a.C (figs. 18, 19).. Essas
estruturas têm uma sistemática construtiva constante, usando blocos de
pedra lavrada fincados verticalmente no solo e preenchimento com
cascalho.Groucutt et al., “Monumental Landscapes of the
Holocene Humid Period in Northern Arabia”.
Figura 18: Mustatil (cercado retangular) próximo a al-Ula, Arábia Saudita, c. 5000 a.C..


As extremidades desses cercados são plataformas que às vezes contêm
um espaço semienterrado com restos de fogo e de gado (fig. 20). Isso
indica que esses cercados podiam ser armadilhas para caçar gado. As
câmaras podiam ser abrigos temporários e, quem sabe, cerimoniais onde as
pessoas cozinhavam e consumiam a caça.Thomas et al., “The Mustatils”.
Células escavadas

As construções semienterradas são, de toda a arquitetura, as que definem com maior clareza os seus espaços interiores. Elas necessariamente são construídas com alguma combinação de escavação, aterro e muros de arrimo em pedra. Esses arrimos vão desde pedra lavrada, blocos simplesmente recolhidos e empilhados, até grandes lajes megalíticas.
O conceito de uma arquitetura feita de espaços como que escavados na matéria sólida não é só uma alegoria: as mais antigas construções duráveis que se conhece eram semienterradas ou tinham pelo menos uma parte do seu espaço escavado contra o terreno inclinado (fig. 21). Os monumentos de Göbekli Tepe, no extremo norte do Crescente fértil, foram construídos desse modo entre 9600 e 8500 a.C (fig. 22). Não está claro se esses espaços eram originalmente cobertos; se fosse o caso, a semelhança com cavernas seria ainda mais marcante.



A partir daí, o tipo da construção semienterrada se espalha pelo corredor eurasiático durante o período Neolítico. A arquitetura megalítica na Europa se reporta a essa configuração, como no conjunto de templos construídos antes de 3000 a.C. em Malta (fig. 23). Esses templos eram formados por sequências de espaços semicirculares cada vez mais restritos, dando um senso de reclusão crescente até que se alcançava um altar no fundo da construção (fig. 24).
As construções semienterradas se aclimatam até as extremidades úmidas da Eurásia, onde elas são usadas tanto como sepulturas quanto como habitações — às vezes ao mesmo tempo. As construções monumentais muitas vezes são delimitadas com imensas lajes de pedra em todos os lados: os dolmens ou antas, como a da orca de Pendilhe, em Portugal, datada do IV milênio a.C. (fig. 25). Essas estruturas teriam sido cobertas com um terrapleno por todos os lados, formando um túmulo, e poderiam ser usadas para vários propósitos rituais: desde sacrifícios religiosos até sepultamentos humanos.
Figura 26: Túmulo de Maeshowe, ilhas Órcades, c. 2800 a.C. Representação tridimensional por Engine Shed para Historic Environment Scotland, 2012.
Um exemplo de túmulo ainda recoberto pelo seu terraplano é o Maes Howe, nas ilhas Órcades, no extremo norte das ilhas Britânicas (fig. 26), construído c. 2800 a.C., no Neolítico.

O Maes Howe tem uma câmara central quadrada, com 4 metros de lado, debaixo de um terrapleno artificial. Um corredor com 11 metros de comprimento mas menos de um metro de pé-direito dá acesso à câmara, de onde se abrem três células secundárias (fig. 28). Como em Malta, o espaço mais importante é a célula que fica diante do eixo do corredor (fig. 27), pelo qual a luz do sol entra no dia do solstício de inverno.

Habitações semienterradas
Figura 29: Habitações semienterradas em Skara Brae, ilhas Órcades, 3100–2800 a.C. Reconstituição digital por Al Rawlinson, 2021.

A configuração desse túmulo se parece bastante com a das habitações em Skara Brae, também nas ilhas Órcades e datadas da mesma época (fig. 31).
Aqui também, cada casa tem uma câmara principal com algumas células satélites; todas as casas se articulam em volta de um corredor central, e o conjunto é coberto por um terrapleno (fig. 30) apoiado em vigas de madeira. A única fonte de iluminação direta era uma abertura zenital, que também servia de exaustor.


Outra semelhança com o Maes Howe é que alguns corpos foram sepultados dentro das próprias casas, debaixo das plataformas que serviam de bancos e camas (fig. 32).
No Japão, as casas semienterradas aparecem desde o final do
Paleolítico,Kawashima, “Burial Practices and Social
Complexity”.
e são cobertas com uma estrutura em madeira
revestida com casca de árvore (figs. 33, 34). Esse tipo continua
dominante na habitação rural japonesa, com alguns aprimoramentos, até o
século XVI d.C.


A solução espacial da câmara com células acopladas reaparece nas necrópoles etruscas, na Itália do século VI a.C. em diante. A chamada tumba dos relevos na necrópole de Banditaccia, na antiga cidade etrusca de Cisra, é um dos exemplares mais característicos desse tipo (fig. 35). Ela é literalmente escavada na rocha, como a maioria das tumbas da nobreza etrusca, e tem um espaço central de onde irradiam as células para os sarcófagos.
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Plataformas e terraplenos
O abrigo aconchegante num espaço escavado na terra ou adossado a um talude é uma das mais antigas formas de construção humana. Sempre que as sociedades se estabelecem em assentamentos permanentes ou, pelo menos, sazonais, elas começam a substituir os abrigos no solo natural pela construção de terraplenos. Eles podem recriar o senso de proteção do solo escavado ou do talude, ou então, pelo contrário, colocar uma construção em evidência acima do nível do terreno à sua volta.
O conceito de plataforma vem da alegoria da cabana primitiva
na forma contada pelo arquiteto alemão Gottfried Semper (fig. 36) num
artigo de 1851 intitulado “Os quatro elementos da arquitetura”.Semper, Die vier Elemente der Baukunst.
Semper se inspirou numa cabana de índios karib
(fig. 37) que ele tinha visto na exposição universal de Londres, aquela
do palácio de Cristal.Semper, Der Stil in den technischen und
tektonischen Künsten, oder, Praktische Aesthetik.
Como a maioria dos europeus do seu tempo, Semper
considerava que uma sociedade dita “primitiva” no século XIX seria comparável a uma comunidade do
passado remoto, nas origens da humanidade.
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Espaço subtrativo
A espacialidade da arquitetura na terra e, particularmente, o tipo da
câmara com células anexas, é um paradigma que pode ser adaptado a uma
gama muito variada de necessidades arquitetônicas, da habitação a
grandes edifícios públicos. Na bacia do Mediterrâneo, a câmara com
células ou as sequências de células resultam em composições que
respondem bem ao clima ameno, um pouco seco e muito ensolarado da
região. Os abrigos sazonais de caçadores-coletores atestados no Levante
desde 12.800 a.C.Bar-Yosef e Belfer-Cohen, “The Origins of
Sedentism and Farming Communities in the Levant”.
logo deram origem a assentamentos densos formados
por células com estrutura em adobe.Rosenberg et al., “7,200 Years Old Constructions
and Mudbrick Technology”.

O sítio representativo dessa composição de habitações por células construídas em adobe é a aldeia neolítica de Çatal Höyük, no sul da Anatólia, datada de 7100 a.C (fig. 38). Çatal Höyük foi ocupada sazonalmente por uma comunidade agropastoril e tinha um tecido construído muito compacto, com poucos pátios internos e nenhuma rua (fig. 39).
As células eram construídas com uma estrutura portante mista de madeira e grandes blocos de adobe (fig. 40). O espaço interior era organizado com uma área central cercada por plataformas.

Taipas
Além da alvenaria de blocos, há outro modo tradicional de construir paredes: as taipas. Esse termo designa uma grande variedade de métodos de construção com terra. Alguns, como a taipa de mão, pau-a-pique ou tabicado, consistem numa armação em madeira ou fibras vegetais, sobre a qual se coloca uma camada de terra; nesses casos, a parede tem uma resistência estrutural baixa. Por isso, esses tipos de taipa são usados sobretudo para paredes de vedação, ou em construções muito pequenas e simples.
Quando se fala em taipa como sistema estrutural, é a taipa de pilão que vem à mente: uma série de camadas de terra compactada, geralmente assentadas dentro de uma forma temporária (o taipal) ou como um terrapleno entre paredes de alvenaria.
Esse procedimento, na sua forma tradicional, foi descrito e ilustrado
pelo engenheiro francês Jean-Baptiste Rondelet no início do século XIX.Rondelet, Traité.
O sistema da taipa deve, em quase todos os casos,
assentar sobre uma fundação em pedra aparelhada ou cantaria (fig. 41).
Essa fundação dá um assentamento mais homogêneo para a parede, e que a
umidade ascendente comprometa a solidez da parede. Do mesmo modo, a
taipa deve ser coroada com um ou mais frechais em madeira, para
regularizar o assentamento da cobertura sobre a parede.

Ao contrário da melhor prática na concretagem, na taipa cada camada comprimida (fig. 42) precisa secar antes de se lançar a camada seguinte. A largura do taipal, e portanto da parede de taipa como um todo, é tradicionalmente determinada pelo espaço que uma pessoa precisa ter para se movimentar e pisar a terra.
O taipal geralmente é uma forma móvel em madeira, apoiada en tirantes que deixam buracos regulares na taipa (fig. 41). Esses buracos podem ser simplesmente tapados, ou podem servir de apoios para uma camada de revestimento. Em alguns casos, os tirantes podem ser deixados no corpo da parede para dar mais estabilidade e facilitar o acesso para manutenção. Esse costume é tradicional na região do Sael, ao sul do deserto do Saara, por exemplo nas cidades históricas do delta do rio Níger, como Djenné (fig. 43).
Na teoria, a taipa de pilão poderia se prestar a formas totalmente orgânicas, já que ela não depende do módulo mínimo de um bloco. Na prática, ela é usada sobretudo em grandes paredes retilíneas, para permitir a reutilização do taipal com mais facilidade. A grande espessura das paredes em taipa de pilão faz com que elas, em geral, não precisem de contraventamento.

Terraplenos
O conceito de terrapleno se realiza de fato com uma construção um pouco mais complexa. Ela consiste nalguma espécie de terrapleno entre contenções em alvenaria. Ao contrário da taipa de pilão, que usa formas removíveis, o terrapleno fica permanentemente constituído por esse sistema de enchimento e contenções. São sistemas usados sobretudo para edifícios grandes, com coberturas pesadas e onde se busca um aspecto monumental a partir da aparência da massa edificada.
A antiga Mesopotâmia tem alguns dos mais antigos exemplos de parede espessa. Os templos dos antigos sumérios, nos IV e III milênios a.C., usam paredes espessas e mesmo terraplenos maciços. O Zigurate de Ur, construído entre 2050 e 1980 a.C., é talvez o exemplo mais emblemático e bem conservado, apesar de ter sido restaurado com uma mão bem pesada no final do século XX (fig. 44). O que resta do monumento hoje em dia é um imenso terraço em degraus, com muros de arrimo em adobe que enquadram um terrapleno com 30 metros de altura.


Os zigurates na verdade eram mais do que o simples terraço com um
edifício em cima; eles eram sistemas de espaços abertos e fechados
sucessivos,Anastasio, Building Between the Two
Rivers.
com portais controlando o acesso às areas mais
internas (fig. 45). As paredes eram peças chave nesse sistema, portanto,
e elas apresentam variações sobre o tema da estrutura em adobe, de
acordo com a espessura de cada uma.

Estruturas simples poderiam ter apenas uma alvenaria em adobe apoiada sobre uma sapata corrida em pedra lavrada (fig. 46). Nesse caso, alguns blocos seriam grandes o suficiente para travar a espessura da parede de um lado a outro: são o que chamamos de blocos juntouros ou perpianhos.
No entanto, edifícios maiores em geral precisam de paredes mais
grossas e estáveis. Nesse caso, era comum encapar o miolo da parede em
adobe com uma face de tijolos cozidos em cada lado.Anastasio, Building Between the Two Rivers,
62.
Essas faces em tijolo cozido eram tão estruturais
quanto o miolo em adobe. Elas eram ligadas entre si, em algumas fiadas,
com cordas e esteiras de palha embutidas na argamassa.

Seria esse o sistema construtivo adotado em grandes edifícios, como o antiquíssimo “templo de Enki” em Eridu (e que talvez fosse um palácio), construído por volta de 4000 a.C. (fig. 47). E nos grandes terraços que elevam os edifícios públicos monumentais, a camada é tripla: tijolo cozido, adobe, e o terrapleno propriamente dito preenchido com qualquer tipo de material compactado — terra, entulho de construção e outros resíduos.
Com o tempo, essas faces em tijolos cozidos seriam vistas como uma superfície ideal para ornamentar a construção. Na Babilônia, os tijolos na superfície externa de algumas muralhas eram decorados com relevos pintados e tinha um acabamento vidrado. É o caso da famosa porta de Ishtar, atualmente reconstituída a partir de vestígios originais no museu Pergamon de Berlim (fig. 48).

Figura 49: Porta de Ishtar, reconstituição virtual por Marco Mellace, 2019.
Além dessa decoração, também podemos ver na própria porta de Ishtar (fig. 49) como a massa construída do portal enquadra o espaço numa sucessão de pátios cada vez mais restritos, até chegar na porta propriamente dita. Esse enclausuramento dos volumes é a função primordial dessas estruturas monumentais, seja por motivos militares ou simbólicos.
Fundações
Todas as construções que não são simplesmente escavadas no chão ou elevadas sobre um terrapleno precisam de algum tipo de alicerce para se assentarem com estabilidade. Além de serem esse apoio sobre o chão, as fundações tradicionais são muitas vezes um recurso expressivo da arquitetura, visível acima da superfície do solo, e ajudando a dar uma impressão de solidez para o edifício.
As fundações existem para distribuir a carga do edifício no solo de
modo homogêneo. Para isso, a orientação que todos os tratados de
arquitetura mencionam é cavar uma vala até encontrar rocha ou um subsolo
firme.Vitrúvio, Tratado de arquitetura, livro I:v e
VI:xi; Alberti, Da arte edificatória, livro III:iii; Palladio,
I quattro libri dell’architettura, livro I:vii–viii.
As fundações tradicionais são quase sempre
baldrames ou sapatas corridas, isto é, uma espécie de alicerce contínuo
e alargado, sempre alinhado com a parede ou a colunata que vem por cima
(fig. 50). Em geral, elas são construídas em pedra lavrada ou
aparelhada, ou seja, pedras talhadas mais grosseiramente e encaixadas
sem um aparelho regular.


Só que nem sempre isso é possível, especialmente onde o solo é muito profundo, como em regiões tropicais ou em planícies aluviais. Nesses casos, onde não é possível levar as fundações até uma camada de rocha, as fundações funcionam de modo um pouco diferente: elas precisam distribuir a carga do edifício para o solo com a maior regularidade possível. Nos solos rasos, onde a rocha ou uma camada compacta pode ser encontrada perto da superfície, as fundações podem se apoiar diretamente sobre essa camada. Já nos solos profundos, a terra funciona como um material muito viscoso, que vai resistir à carga transmitida pelas fundações (fig. 51).
Nesse caso, duas precauções são muito importantes: primeiro, a carga do edifício precisa ser equilibrada entre todas as fundações, para evitar o assentamento diferencial, que é quando uma parte do edifício afunda mais no solo do que outra; segundo, as fundações precisam estar comprimidas em todas as direções — a carga não pode ser distribuída onde houver esforços de tração ou corte.

É por isso que alguns dos assentamentos permanentes mais antigos que se conhece já eram construídos sobre plantas bastante regulares. É o caso de Mehrgarh, uma cidade neolítica no vale do rio Indo (fig. 52).
Mehrgarh foi construída mais de cinco mil anos atrás numa planície aluvial, portanto numa área de solo profundo e pouco resistente. As escavações descobriram construções com malhas retangulares e quadradas de sapatas em pedra lavrada com argamassa de barro sustentando paredes em blocos de adobe (fig. 53). Não se sabe se essas estruturas eram casas ou celeiros, mas em qualquer caso elas mostram uma preocupação importante com a homogeneidade do assentamento no solo.

Dimensionamento
Figura 54: Construção de uma fundação em pedra lavrada para uma casa de pau a pique. House Alive, 2016.
Por causa das diferenças enormes entre tipos de solos, as regras de dimensionamento das fundações são só indicações preliminares. Mais do que em qualquer outra parte da arquitetura tradicional, a solidez das fundações depende da experiência dos mestres de obras de cada lugar, que conhecem profundamente as características dos solos e dos materiais de construção na sua região (fig. 54).
Ainda assim, e em caráter muito geral e preliminar, podemos seguir as regras de dimensionamento estabelecidas nos tratados de arquitetura de Alberti e Palladio. Segundo Alberti, as sapatas ou os baldrames das fundações precisam ter, pelo menos, um oitavo da altura total das paredes acima delas (mas, no mínimo, um metro de profundidade). Além disso, Palladio indicava que a espessura das fundações devia ser o dobro da espessura das paredes assentada sobre elas (fig. 51). Em terrenos muito instáveis, arenosos ou pantanosos, pode-se usar fundações indiretas: as sapatas são assentadas sobre um cravejamento de estacas formadas por toras de madeira fincadas no chão. Como esses tipos de solos costumam ser totalmente encharcados quase o tempo todo, a água impede o contato do oxigênio com a madeira, que demora mais para apodrecer.

Outra preocupação que precisamos ter na construção de fundações é
evitar a umidade ascendente. A umidade pode desagregar a adesão entre as
pedras e a argamassa, além de subir até as paredes acima do chão. Tudo
isso fragiliza a estrutura e compromete a regularidade na distribuição
das cargas. Uma solução comum para o problema da umidade ascendente é
assentar as fundações sobre uma camada de areia e pedra britada, como
nos mostra o manual de Francisco Pereira da Costa,Pereira da Costa, Enciclopédia prática, 14:
obras de alvenaria II:3.
um técnico em edificações português de meados do
século XX (fig. 55).
Assentamento de fundações

Agora que já sabemos quais são os principais tipos e as dimensões das fundações tradicionais, precisamos saber como assentá-las. Isso se faz escavando uma vala, que pode ser um pouco mais larga do que a espessura das fundações (fig. 55). Em terreno movediço, é preciso escorar a vala, como se fosse um taipal invertido (fig. 56). Depois de construída a fundação, a largura de vala que sobra precisa ser aterrada e compactada para garantir a boa distribuição das cargas, especialmente onde o solo for profundo.
As fundações tradicionais em geral não são “armadas”, ou seja, reforçadas com outros materiais que não a alvenaria. Isso é porque, como já vimos, as fundações tradicionais não podem, em condições normais, ser submetidas a esforços de tração ou cortantes. Apesar disso, há algumas exceções em regiões sujeitas a terremotos (fig. 57).
Figura 57: Construção de fundações mistas para paredes em adobe. Arquitectura sin Fronteras Galicia, 2014.




Figura 58: Esquema de montagem das fundações mistas de madeira sobre pedra lavrada na arquitetura vernácula no Brasil, segundo Vasconcellos, Arquitetura no Brasil: sistemas construtivos
As estruturas mistas de alvenaria e madeira são muito comuns nessas
regiões do mundo, e especialmente no leste da Ásia e na península
Ibérica — e também, por extensão da cultura ibérica, na América Latina.
Nesse caso, é comum que as fundações sejam elas próprias mistas
(fig. ¿fig:abscB?). É o caso, especialmente, da
construção vernácula no Brasil, que foi estudada nestes croquis do
arquiteto Sylvio de Vasconcellos na segunda metade do século XX.Vasconcellos, Arquitetura no Brasil, sistemas
construtivos.
A nossa tradição usa esteios e baldrames em
madeira (fig. ¿fig:abscD?) engastados num alicerce em
pedra aparelhada (fig. ¿fig:abscA?). O nabo do
esteio também pode ser levemente queimado e fincado diretamente no solo,
mas esse tipo de construção tende a apodrecer com facilidade
(fig. ¿fig:abscC?).
A deterioração de fundações em madeira, muito frequente no Brasil,
mostra como é importante garantir uma boa drenagem em volta das
fundações. Por isso, é costume soerguer os alicerces um pouco acima do
nível do solo, e portanto também o nível do piso térreo fica
ligeiramente elevado. Assim, há menos risco de infiltração de umidade na
junta entre a sapata de fundação e a parede. Essa era a prática padrão
nas muralhas e nos edifícios da antiga Mesopotâmia (fig. 46), onde a
superestrutura costumava ser construída em adobe e, portanto, era
especialmente sensível ao risco de umidade ascendente.Anastasio, Building Between the Two Rivers,
59.
Quando se usam pisos em madeira, esse sistema também garante uma boa ventilação entre o chão e o assoalho do térreo, o que também ajuda a reduzir o acúmulo de umidade (fig. 59).

Silharia
Figura 60: Bit Resh, o templo de Anu e Antum em Uruk. Iniciado no século XV a.C. Reconstituição do estado no período selêucida, século III a.C.: Artefacts, 2010.
O efeito arquitetônico do alicerce sobrelevado sempre foi bastante explorado para dar uma impressão de monumentalidade em construções importantes. Quando essa elevação é especialmente exagerada para além dos requisitos práticos, e ganha uma superfície diferenciada ou decorada, ela é chamada de silhar ou silharia. Um exemplo de silharia ornamentada é a do templo de Anu em Uruk, na antiga Mesopotâmia. Essa construção do século XV a.C. (fig. 60) tem um silhar decorado com figuras humanas esculpidas na alvenaria.


Apesar de ser bastante detalhado (fig. 61), esse silhar articula a elevação do templo com uma impressão de solidez e textura rústica na base (fig. 62).

Uma versão ainda mais monumental desse mesmo expediente é o pódio usado em muitos edifícios da Antiguidade. Em geral, como aqui no palácio de Persépolis, do século V a.C. (fig. 63), o pódio é uma combinação do terrapleno com a silharia.
Uma última ameaça para a durabilidade das fundações tradicionais é colocar sistemas construtivos modernos em contato com elas, especialmente concreto armado e impermeabilizantes. Já vimos como as fundações tradicionais devem ser construídas para drenar a umidade do solo; os materiais modernos são ditos “impermeáveis”, mas na prática o que eles fazem em contato com os sistemas construtivos tradicionais é impedir a umidade que já entrou de sair da construção.
Esse tipo de problema ocorreu no sítio arqueológico da antiga Babilônia (fig. 64). Na década de 1960, foi construído um percurso turístico com piso em concreto. Isso impediu que a umidade do solo escoasse pela superfície, para evitar que os turistas tivessem que caminhar no chão lamacento. Só que, com isso, a água ficou retida no subsolo, começou a ascender por dentro da estrutura das muralhas e a escoar para fora da parede logo acima do chão. Isso causou a destruição da camada mais superficial dos tijolos, que foi sendo lavada ao longo dos anos por essa circulação da água.
Figura 64: Modelo fotogramétrico da porta de Ishtar, Babilônia, século VI a.C. Programa de Pós-graduação em Patrimônio da Universidade da Flórida e World Monuments Fund, 2016.
Conclusão
As fundações tradicionais são, portanto, soluções eficientes e adaptadas ao tipo de solo e aos materiais disponíveis na região. Elas são o resultado de refinamentos e adaptações desenvolvidas ao longo de milênios, mas como toda construção elas se deterioram com o tempo. Acontece que muitas tentativas de melhorar o desempenho das construções tradicionais usando materiais industrializados acabam piorando as condições que elas tentavam resolver. Quase sempre, a melhor solução para conservar uma construção tradicional é conhecer e aplicar os próprios sistemas construtivos originais dessa construção. Por isso, nos próximos tópicos, vamos conhecer mais sobre as estruturas que vão em cima das fundações tradicionais.