Programa, função e propósito

Morfologia e tipologia

Revisão crítica do projeto modernista


Le Corbusier, arquiteto, maquete do plano Voisin com a sua inserção no centro histórico de Paris (1925)
Figura 1: Le Corbusier, arquiteto, maquete do plano Voisin com a sua inserção no centro histórico de Paris (1925)

West End, Boston, demolição do bairro para construção do novo centro administrativo. Foto: Lawrence Lowry, 1959
Figura 2: West End, Boston, demolição do bairro para construção do novo centro administrativo. Foto: Lawrence Lowry, 1959

Henri Poelaert, arquiteto, palácio de Justiça de Bruxelas. Foto de 1905
Figura 3: Henri Poelaert, arquiteto, palácio de Justiça de Bruxelas. Foto de 1905

Sete tipos edilícios

Sete tipos edilícios. Baseado em Westfall, 1991
Figura 4: Sete tipos edilícios. Baseado em Westfall, 1991

Os sete tipos edilícios fundamentais (fig. 4) correspondem a sete categorias de propósitos sociais da arquitetura. Esses propósitos se encontram em praticamente todas as sociedades que constroem tipos de edificações diferenciadas entre si. Os tipo foram concebidos por C. William Westfall, professor na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, no início da década de 1990.Westfall, “Building Types”.

São morar, celebrar, governar, venerar, abrigar, suster e imaginar. Não precisam se parecer entre si nas diferentes sociedades, sendo uma ideia de distribuição de ambientes e não um partido arquitetônico específico. Trata-se de um conjunto de soluções que se encontra em quase todas as sociedades sedentárias.

Tipos privados

Domus (morar); Mégaron (celebrar); Régia (governar); Tholos (venerar); Hipóstilo (abrigar); Taberna (suster); Theatrum (imaginar): são conceitos um pouco abstratos, não objetivando-se focar nas especificidades dessas formas ou de seus nomes, mas em na sua constituição como propósitos sociais que são mais ou menos universais (quase todas as sociedades sedentárias e que vão produzir uma arquitetura nesse gradiente do rústico para o monumental, vão conter lugares para essas atividades). Todas elas vão partir de uma solução básica de abrigo, que continua pertinente em uma série de funções como mercados, estações de transporte, etc., ou seja, atividades utilitárias que demandam um espaço pouco diferenciado e flexível.

Hipóstilo

A mais simples cobertura com apoios para proteger um ambiente, que delimita fisicamente o espaço para conferir um uso que pode ser “congelado” em uma determinada sociedade.

Domus

Modelo de uma casa romana de classe média alta
Figura 5: Modelo de uma casa romana de classe média alta
Domus

Chega-se ao tipo básico da casa (ou “domus”), sendo um morar que não é necessariamente apenas residencial e contando com diferenciações de privacidade, zonas para atividades diversas, como loja, cozinha, quartos, etc. (fig. 5) A família é aqui considerada o núcleo social mínimo, geralmente com vínculo de parentesco quase sempre unifamiliar. Há ainda um espaço mais público e outro mais reservado. O arquétipo do morar extrapola, assim, as funções específicas de uma casa, no sentido estritamente residencial, mas diz sobretudo sobre uma certa maneira de se relacionar com o espaço público, com um espaço mais resguardado e outro com maior interação com o mundo exterior. Isso justifica seu diagrama formal apresentar uma sala atrás da outra (em profundidade), sendo a da frente aberta e a posterior mais privada.

Taberna

Tabernas romanas em Ostia
Figura 6: Tabernas romanas em Ostia
Taberna

A taberna pode ser entendida como o mercado (suster), onde tudo é público, voltado para o exterior (rua), de modo a maximizar a exposição do que há dentro (produtos e serviços ofertados). Destina-se a atividades essencialmente econômicas variadas e separadas individualmente (fig. 6). O lugar de trabalho ou comércio é caracterizado por permitir a todos(as) acesso igual ao espaço público, justificando a configuração na taberna como uma série de células uma ao lado da outra. Assim, todos os comerciantes, trabalhadores ou produtores estejam um pé de igualdade na esfera pública.


Uma das combinações de tipos mais antigas e mais comuns em todas as culturas é a da domus com a taberna, onde as lojas e oficinas ocupam o térreo e a morada unifamiliar ou coletiva fica nos andares superiores. É o caso das insulae da Roma antiga, muito semelhantes aos edifícios de apartamentos com comércio no térreo que encontramos hoje em dia nas nossas cidades (fig. 7).

Insula em Ostia
Figura 7: Insula em Ostia

Tipos cívicos

O morar e o suster são essencialmente atividades privadas. Já as atividades cívicas são:


Mégaron

A celebração ou “congregar” (“mégaron”) e o governo (“régia”) são atividades que dizem respeito à toda a sociedade, por afetarem a comunidade integralmente.

Surge, então, a demanda por reunir pessoas (congregar/celebrar), sendo o princípio do evento coletivo para reunião. O espaço da celebração é insuficientemente indiferenciado para receber uma grande congregação sem hierarquias e acolhendo a todos, daí sua forma longitudinal vinculada ao propósito de celebrar algo que está na extremidade do espaço. Constitui-se, assim, o tipo para templos e igrejas, apesar de receberem formas de culto diferentes. A sala de aula convencional também tem esse formato com um ponto focal único.

Mégarōn: Modelo do Partenon na Acrópole de Atenas
Figura 8: Mégarōn: Modelo do Partenon na Acrópole de Atenas

Régia: Cidade proibida, Pequim, séculos XIII a XIX
Figura 9: Régia: Cidade proibida, Pequim, séculos XIII a XIX
Régia

O governar refere-se ao funcionamento administrativo de uma sociedade, variando conforme sua organização e sendo mais complexo por contar com um pátio central e uma hierarquia espacial. O importante é o que faz a forma, seus propósitos. Esse tipo da Régia ou do governo (poder político) e da logística administrativa apresenta uma série de espaços organizados de forma variada, sem divisões específicas, mas com uma configuração meio padronizada do espaço com um pátio central ou dianteiro (aberto ou fechado), que sinaliza um ponto focal. Assim, o papel desse edifício é de cuidar do público, sendo que esse pátio ou praça pública simbolizam essa importância do coletivo.


Theatrum

O tholos e o theatrum voltam-se para o universo mental, um imaginar do que pode vir a ser, uma ficção. As assembleias políticas podem seguir a forma do teatro, a partir da ideia das pessoas se reunirem para imaginar a sociedade. No “theatrum” não existe a ideia de ponto focal único, apesar de manter o princípio de runião pessoas com um mesmo objetivo.

Teatro romano em Dougga, atual Tunísia, reconstituição por Jean-Claude Golvin
Figura 10: Teatro romano em Dougga, atual Tunísia, reconstituição por Jean-Claude Golvin

Tholos: Templo do amor, jardins de Versalhes
Figura 11: Tholos: Templo do amor, jardins de Versalhes
Tholos

Por fim, o tholos é mais fechado e focado na introspecção, sendo um lugar de recolhimento, que vai envolver e separar a pessoa do mundo à sua volta.


Por fim, ressalta-se que não se são tipos que se restringem à Bacia do Mediterrâneo, apesar de os diagramas remeterem muito a edifícios característicos dessa região. Entretanto, muitos deles aparecem em vários outros contextos. A domus e a taberna são tipos praticamente universais, presentes em qualquer tecido urbano relativamente adensado, na forma de lojas ou casas com mais ou menos essa configuração. A régia também segue esse padrão com palácios ou complexos administrativos com conformações mais difusas. O tholos segue a mesma caracterização como tipologia universal, sendo apenas o mégaron e o theatrum um pouco mais específicos na forma dos diagramas vinculadas à Bacia do Mediterrâneo, a rigor.

Os sete tipos também podem ser pensados como unidades mínimas que podem ser recombinadas para formar edifícios complexos e conjuntos arquitetônicos mais extensos, como no fórum de Trajano (fig. 12).

Fórum de Trajano e Basílica Ulpia, início do século II d.C. Desenho: 3coma14, 2011
Figura 12: Fórum de Trajano e Basílica Ulpia, início do século II d.C. Desenho: 3coma14, 2011

Tipologia processual

Estudos tipológicos italianos


II Fase, século XIV
a
III Fase, século XVI
b

Figura 13: Saverio Muratori, processo de urbanização do bairro Rialto, Veneza. Studi per una operante storia di Venezia, 1959. a – II Fase, século XIV, b – III Fase, século XVI

A tipologia processual é uma metodologia de análise e projeto desenvolvida na década de 1950 por Saverio Muratori, quando ele era professor na Universidade de Veneza.Muratori, “Studi per una operante storia urbana di Venezia”.


Tipos de células base do Mediterrâneo ocidental. Desenho: Pedro P. Palazzo, 2021
Figura 14: Tipos de células base do Mediterrâneo ocidental. Desenho: Pedro P. Palazzo, 2021

A obra de Muratori foi organizada numa teoria sistemática por alguns dos seus alunos, como Gianfranco CaniggiaCaniggia e Maffei, Lettura dell’edilizia di base; Caniggia e Maffei, Il progetto nell’edilizia di base.

e Giuseppe Strappa.Caniggia, “Permanenze e mutazioni nel tipo edilizio e nei tessuti di Roma (1880–1930)”.

Tipos de base e duplicações, levantados na década de 1940 por Gianfranco Caniggia
Figura 15: Tipos de base e duplicações, levantados na década de 1940 por Gianfranco Caniggia

Centuriação romana
Figura 16: Centuriação romana

Caniggia, Como.

Como, Itália, II fase da ocupação romana. Levantamento por Gianfranco Caniggia, 1965
Figura 17: Como, Itália, II fase da ocupação romana. Levantamento por Gianfranco Caniggia, 1965

Processo tipológico em Como, Itália. Levantamento por Gianfranco Caniggia, 1965
Figura 18: Processo tipológico em Como, Itália. Levantamento por Gianfranco Caniggia, 1965

Florença, Roma e Gênova
a
Pienza
b

Figura 19: Mutações diacrônicas na edilícia de base. Gianfranco Caniggia, 1977. a – Florença, Roma e Gênova, b – Pienza

Processo tipológico

Vamos seguir o percurso do processo tipológico da escala da casa à da cidade. A arquitetura islâmica é o ponto de articulação ideal para esse processo porque ela se desdobra do interior para os limites do espaço público, enquanto a arquitetura do norte da Europa, por exemplo, faz o percurso inverso — do espaço público para a delimitação do espaço doméstico.


A casa com pátio do Mediterrâneo ocidental se desenvolve a partir de duas raízes convergentes: o oecus primitivo feito de células espaciais pequenas e a combinação desse tipo com a regia para formar a domus romana, a morada grega ou a casa compacta do Crescente fértilStrappa, Carlotti, e Camiz, Morfologia urbana e tessuti storici = urban morphology and historical fabrics.

(fig. 20).

Processo tipológico da casa de células até a casa-pátio. Desenho: Giuseppe Strappa
Figura 20: Processo tipológico da casa de células até a casa-pátio. Desenho: Giuseppe Strappa

Princípios do projeto tipológico


Ammaia, Lusitânia romana
Figura 21: Ammaia, Lusitânia romana

Reconstituição de Ammaia
Figura 22: Reconstituição de Ammaia

Cultura doméstica no Mediterrâneo


A Bacia do Mediterrâneo (fig. 23) oferece exemplos interessantes de como as tipologias edilícias se formam e transformam-se ao longo do tempo, sendo selecionada para estudo por motivos acadêmicos (tradição consolidada de estudos sobre arquitetura vernácula), já que também existem exemplares em outras partes do mundo. Permitem entender essas edificações individualmente e sua inserção em conjuntos/séries que se desenvolvem ao longo do espaço e do tempo (a partir do Império Romano até o fim da Idade Média).

Assim, serão atravessados alguns recortes convencionais na história e na história da arquitetura, por exemplo, não havendo tanta preocupação com o corte entre Antiguidade e Idade Média. Isso ocorrer por este corte não fazer tanto sentindo no caso da arquitetura doméstica, que se transforma muito lentamente, sobretudo, sendo determinada por condições climáticas, geográficas e por preexistências do tecido urbano. Nela não é notada uma sucessão do que se poderia chamar de estilos (entendidos como características decorativas), que aqui tendem a ser mais conservadores, pois não se transformam tanto quanto questões decorativas, formas de articulação das superfícies ou mesmo de sistemas construtivos (que, teoricamente, são os elementos mais duradouros, quase que totalmente atrelado ao clima, geografia e materiais regionais disponíveis).

No Mediterrâneo ocidental durante o Império Romano são observados vários sítios com padrões que variam a cada região.

Mediterrâneo ocidental na época romana
Figura 23: Mediterrâneo ocidental na época romana

Bases tipológicas


Sítio arqueológico de Lattara, feitoria etrusca no sul da Gália, séculos VII a.C.—III d.C. Desenho: Gailledrat e Vacheret, 2020
Figura 24: Sítio arqueológico de Lattara, feitoria etrusca no sul da Gália, séculos VII a.C.—III d.C. Desenho: Gailledrat e Vacheret, 2020

Lattara, um antigo entreposto comercial céltico, etrusco e grego, é um exemplo em que se destaca o parcelamento do solo para alocar espaço para construção (fig. 24). Trata-se de uma “aldeira–rua” em que a via é o caminho principal e traçado dominante, sendo as ruas perpendiculares de caráter secundário. Esse padrão forma quarteirões relativamente espontâneos e não planejados, mas organizados e homogêneos na distribuição dos lotes.


Estes configuram a unidade urbana com casas pequenas (fig. 25), cujos usos não são exclusivamente residenciais (ao menos, não como se conhece atualmente), sendo a forma mais básica de construção daquela sociedade. Tal casa é pouco especializada e não demanda grandes especificidades.

Macroparcela 27 de Lattara com as fundações de três casas de células etruscas. Desenho: Lebeaupin, 2014, ap. Gailledrat e Vacheret, 2020
Figura 25: Macroparcela 27 de Lattara com as fundações de três casas de células etruscas. Desenho: Lebeaupin, 2014, ap. Gailledrat e Vacheret, 2020

Casa absidial no subúrbio de Lattara. Reconstituição: M. Mondou, reproduzida por Gailledrat e Vacheret, 2020
Figura 26: Casa absidial no subúrbio de Lattara. Reconstituição: M. Mondou, reproduzida por Gailledrat e Vacheret, 2020

O gradiente que recebe essa unidade multifuncional não é um espaço único e sem separação. Cada povo tem sua configuração, conforme suas demandas sociais, climáticas, econômicas, etc. Esse tipo de casa urbana deriva em última análise de uma elaboração da casa rural (fig. 26), que é mais simples, apresentando apenas frentes e fundos (sem qualquer divisão interna).

Os referidos tipos determinam o próprio traçado urbano, que corresponde ao sistema que dá suporte a esse módulo básico, resultando em cidades com vários lotes iguais e com casas muito homogêneas.

Grécia


Nas cidades planejadas da Grécia antiga, os lotes eram rasos, quase quadrados, e os quarteirões eram pequenos. Em alguns casos, como em Olinto (fig. 27), as casas eram geminadas só pelas divisas laterais. Nos quarteirões de Olinto, os lotes tinham cerca de 60′ (sessenta pés) de lado, ou pouco mais de 17 metros. Os fundos eram separados uns dos outros por uma servidão muito estreita, com só 5′ de largura, ou 1,20 metro.Cahill, Household and City Organization at Olynthus.

Quarteirões em Olinto, Grécia, 432–348 a.C. Desenho em Cahill, 2002
Figura 27: Quarteirões em Olinto, Grécia, 432–348 a.C. Desenho em Cahill, 2002

Planta esquemática da casa A vii 4 em Olinto, segundo Cahill, 2002
Figura 28: Planta esquemática da casa A vii 4 em Olinto, segundo Cahill, 2002

As casas-pátio gregas são relativamente quadradas, representando o tipo elementar, formado por acesso, pátio, pórtico, outros ambientes, andar superior. Elas podem aparecer em lotes mais estreitos quando necessário.

A tipologia da casa grega urbana se dividia em dois tipos mais difundidos: a casa com pastas ou salão em forma de pórtico e a casa com prostas, ou pórtico na frente de uma sala separada.Graham, “Origins and Interrelations of the Greek House and the Roman House”.

No tipo de casa com pastas, a sala principal no térreo abria diretamente para o pátio, e ela tinha uma ou duas células laterais sem abertura direta para fora, além de uma série de células funcionais atrás do pastas, incluindo a cozinha (fig. 28). Em casas mais ricas, o pastas podia dar uma volta inteira no pátio e formar um peristilo.

Perto da entrada da casa ficava uma sala de jantar social ou masculina, o andron, geralmente acessado por uma antessala.


Já o tipo com prostas tinha um pórtico entre o pátio e a sala principal, chamada de oikos. Nesse caso também, o pórtico se abria sempre que possível para o sul. Essa composição se aproxima do tipo da régia, com um mégarōn atrás de um pátio. Ela se encontra nas casas na cidade de Priene (figs. 29, 30) e de outras cidades gregas.

Casas em Priene, reconstituídas por Whitley, 2001
Figura 29: Casas em Priene, reconstituídas por Whitley, 2001

Casas em Priene. Reconstituição por Gabriel Gourdoglou
Figura 30: Casas em Priene. Reconstituição por Gabriel Gourdoglou

Reconstituição de casas em Olinto
Figura 31: Reconstituição de casas em Olinto

A regularidade das construções escavadas em Olinto e em outras cidades planejadas indica que se valorizavam a equidade na distribuição da propriedade e uma relativa homogeneidade, ou isonomia em grego, no modo de vida dos cidadãos. Além disso, as casas seguiam, sempre que possível, a mesma orientação solar: a ala principal da casa se abria para o sul, sobre o pátio (fig. 31). A galeria coberta no primeiro andar (fig. 32) protegia os ambientes do sol a pino no verão, mas deixava entrar o sol de inverno, mais baixo.


Reconstituição de um pátio em Olinto, segundo Brunner
Figura 32: Reconstituição de um pátio em Olinto, segundo Brunner

Olinto, casa das cores, reconstituição por Cahill, 2002
Figura 33: Olinto, casa das cores, reconstituição por Cahill, 2002

Por outro lado, a orientação solar idêntica obrigava a mudar o posicionamento da entrada das casas segundo a posição da rua com respeito ao lote (fig. 33).

Conceito de tipo e processo

. . .

Tipo arquitetônico

Conceito por trás do projeto arquitetônico, não sendo individual e sim cultural ou comunitário. Não se trata da representação de um tipo dominante ou de um modelo, pois há uma configuração relativamente variada (espaços, arranjos, etc.) e ajustada a necessidades específicas. Sua duração no tempo depende de mudanças na sociedade e de suas expectativas.

. . .

Processo tipológico

Nota-se uma expectativa convergente sobre o que seja uma casa que suporte uma família tradicional grega, com uma configuração adequada. Há também que se considerar a influência do clima sobre a tipologia, já que essas casas funcionam como instrumentos bioclimáticos: oferecem sombra no verão e uma boa insolação no inverno). Isso é transformado em arquitetura por intermédio de certas expectativas sociais, mas existe o fator pessoal que introduz variações pontuais no tipo, aliado a esses fatores sociais e culturais. Estes impõe uma continuidade ao longo de várias décadas ou mesmo séculos e, juntamente com os fatores ambientais, vão levar a uma lógica muito mais abstrata, mas praticamente imutável por sua variação muito lenta. Excetuam-se os casos extremos como a atual destruição do planeta, em geral, o clima quase não muda ao longo do tempo (que ocorre em uma escala milenar). Essas circunstâncias promovem certa estabilidade na forma arquitetônica, já que algumas casas gregas tradicionais modernas continuam usando pátios e algum forma de pórticos como elementos bioclimáticos, para além de qualquer mudança cultural ocorrida.

Roma


Em contraste com a casa grega, a casa romana privilegiava a regularidade e a axialidade da composição acima da orientação solar. Isso era especialmente o caso nas moradas mais ricas, onde o ritual de receber “clientes” era importante.

Ela apresenta formas um pouco diferentes da anterior, em razão de questões culturais e climáticas, sendo mais axiais em sua configuração básica e sem tanto enfoque na orientação solar. Sua ampliação é feita através da multiplicação do tipo básico.

Esquema de uma domus romana. Modelo: José Antonio
Figura 34: Esquema de uma domus romana. Modelo: José Antonio

Planta esquemática de uma domus na cidade romana de Pompeia, c. século I a.C.–I d.C. Desenho: August Mau, 1899
Figura 35: Planta esquemática de uma domus na cidade romana de Pompeia, c. século I a.C.–I d.C. Desenho: August Mau, 1899

Planta da casa de Salústio, Pompeia, c. século II a.C.–I d.C. Desenho: August Mau, 1899
Figura 36: Planta da casa de Salústio, Pompeia, c. século II a.C.–I d.C. Desenho: August Mau, 1899

A importância dessa axialidade fica mais evidente em casas da elite, implantadas em lotes maiores, como a casa de Salústio (fig. 36). A composição principal dessa casa ignora as divisas do lote e forma um conjunto quase perfeitamente simétrico tanto na fachada quanto na planta. Em contraste, os anexos, como as lojas (fig. 36, n.º 4–9), e os espaços privativos da família, como os jardins com peristilo e o átrio secundário (fig. 36, n.º 31–35), se acomodam no espaço residual entre a composição axial e as divisas irregulares do lote. A vista é desimpedida desde a entrada principal da casa até o tablinum, a sala onde o chefe da família recebia os seus clientes (fig. 37).


Casa de Pansa, Pompeia, vista do átrio através do tablinum até o peristilo. Reconstituição segundo Mau, 1899
Figura 37: Casa de Pansa, Pompeia, vista do átrio através do tablinum até o peristilo. Reconstituição segundo Mau, 1899

Planta estrutural de um átrio toscano, segundo Mau, 1899
Figura 38: Planta estrutural de um átrio toscano, segundo Mau, 1899

O átrio da casa romana é sempre cercado por beirais amplos, geralmente sustentados por duas vigas principais que vencem o vão estrutural mais curto e sustentam outras duas vigas secundárias (fig. 38). Esse sistema deixa o pátio totalmente livre de colunas (fig. 39).


Corte longitudinal da casa de Salústio, Pompeia, século II a.C., compreendendo fauces, átrio e tablinum. Desenho: Mau, 1899
Figura 39: Corte longitudinal da casa de Salústio, Pompeia, século II a.C., compreendendo fauces, átrio e tablinum. Desenho: Mau, 1899

Esquema de uma cisterna romana
Figura 40: Esquema de uma cisterna romana

Cisterna na casa do átrio em U, Aregenua, Gália romana (atual sítio de Vieux-la-Romaine, Normandia)
Figura 41: Cisterna na casa do átrio em U, Aregenua, Gália romana (atual sítio de Vieux-la-Romaine, Normandia)

Os beirais do átrio oferecem uma circulação ao abrigo do sol e da chuva. Eles também canalizam a água para uma cisterna central, debaixo do piso (fig. 40). Deixar a água parada na cisterna ajudava a decantar as impurezas, mesmo quando o abastecimento vinha de um aqueduto e não da coleta da água de chuva. Outra canalização desaguava o excesso da cisterna sobre a rua (fig. 41).


Ao contrário da sociedade grega, a romana admitia grandes desigualdades socioeconômicas que se refletiam no tamanho das casas. Uma casa muito grande, como a casa do Fauno em Pompeia (fig. 42), refletia não só um proprietário rico, como também uma família estendida vivendo no mesmo teto — característica das classes altas — e muitos escravos domésticos. Por isso, a ampliação de uma casa romana se fazia sempre replicando os módulos básicos: o eixo fauces–átrio–tablinum e o jardim com peristilo. As dimensões desses módulos e dos ambientes que faziam parte deles, por outro lado, variavam pouco (exceto a do jardim).

Planta da casa do Fauno, Pompeia, reformada após 66 d.C. Desenho: Mau, 1899
Figura 42: Planta da casa do Fauno, Pompeia, reformada após 66 d.C. Desenho: Mau, 1899

Variantes sincrônicas

Observa-se a força do tipo ao longo da organização de uma sociedade, começando por um muito básico e que vai se tornando mais especializado, estruturado e complexo no tempo e espaço, como visto nos exemplos acima: Lattara (mais básica, com sala na frente e nos fundos, um pátio ou corredor descoberto), casa grega (presença de pátio, pórtico e salas atrás) e casa romana (mais estruturada e complexa, com sua configuração axial (salão), disposição de cômodos ao redor do pátio e jardim com colunatas no fundo, sendo notada a multiplicação desse tipo).

A partir do tipo de uma determinada sociedade, segue-se com a sua aplicação, podendo-se desenvolver tipo mais especializados (como o templo, a casa de banho, o mercado, etc.), mas suas ampliações ou configurações mais complexas resultam de duplicações e articulações de instâncias desse tipo. Então, há também outras leituras desse tipo, como o renque de lojas na fachada voltada para a rua (padarias, restaurantes, oficinas, etc).

Pode-se reduzir o tipo da casa a um mais simples para populações menos favorecidas, contando com apenas um ambiente na frente e outro nos fundos.

Mundo árabe

Sociedades diferentes apresentam configurações diversas, como a casa árabe (com pátios vastos e ocupações nos fundos, com ventilação muito controlada). Combina características dos tipos grego e romano com adaptações bioclimáticas e construtivas originárias da Mesopotâmia. Não se trata de uma derivação direta do modelo mediterrâneo, que não foi criado nem por gregos nem por romanos, pois são práticas culturais que estão amplamente difundidas na Bacia do Mediterrâneo como formas que vão se desenvolvendo e espalhando pelo território, inclusive como fruto de necessidades climáticas. Assim, observa-se enfim um conjunto de variações em cima desse pátio e ambientes voltados para ele, associado às especificidades locais.


Reconstituição da casa de Maomé em Medina, c. 622 d.C., segundo Leacroft, 1976
Figura 43: Reconstituição da casa de Maomé em Medina, c. 622 d.C., segundo Leacroft, 1976

O tipo originário da casa árabe é, na verdade, uma morada rural. Ela parte de um terreiro cercado amplo, onde se podiam arrebanhar os animais da família durante a noite. Um dos lados desse cercado tinha um pórtico aberto para o terreiro, sem divisórias internas. O modelo paradigmático desse tipo é a descrição que foi transmitida através das gerações da casa do profeta Maomé em Medina, no início do século VII d.C. (fig. 43).

O modelo da casa de Maomé é especialmente importante enquanto exemplar específico porque ele não só representa o tipo árabe de base: ele também serviu de modelo para as primeiras mesquitas, e, portanto, deu origem ao desenvolvimento tipológico dessas construções mais especializadas. Isso mostra que a tipologia não está vinculada à “função” das construções, no sentido moderno, mas a um processo de evolução orgânica da cultura edilícia.


Casa no Cairo, atualmente o Museu Gayer Anderson. Desenho por Leacroft, 1976
Figura 44: Casa no Cairo, atualmente o Museu Gayer Anderson. Desenho por Leacroft, 1976

A casa urbana na bacia do Mediterrâneo se desenvolveu em paralelo com o adensamento das cidades. No mundo antigo, só algumas cidades muito populosas, como a própria Roma, faziam jus a edifícios de apartamentos e casas com mais de dois pisos. Mais adiante, ao longo da Idade Média, a necessidade de abrigar o maior número possível de pessoas dentro das muralhas e o desenvolvimento do comércio acabam fomentando o adensamento urbano. Mesmo as casas de famílias relativamente ricas são compactas e se desenvolvem mais verticalmente do que horizontalmente. Em muitos casos, o térreo acaba sendo totalmente dedicado ao trabalho — lojas, oficinas ou depósitos. A área social da casa, incluindo o pátio (sahn), vai ser então erguida para uma espécie de “andar nobre”, no primeiro andar ou, pelo menos, meio nível acima do térreo. Os ambientes privativos da família ocupam mais um ou dois pavimentos acima do andar nobre (fig. 44). Como nas casas da antiga Mesopotâmia, a cobertura da casa árabe é um terraço habitável.


No Mediterrâneo medieval, a casa muito raramente é “coletiva” no sentido de um prédio de apartamentos. Mesmo assim, construções relativamente verticalizadas e com muita área útil existem, para abrigar uma família estendida. É o caso dos tighremt ou casarões rurais dos berberes, nas montanhas da Argélia e do Marrocos (fig. 45).

Tipologia dos tighremt berberes no vale do Draa, Marrocos, segundo Arena e Raffa, 2018
Figura 45: Tipologia dos tighremt berberes no vale do Draa, Marrocos, segundo Arena e Raffa, 2018

Processo tipológico de formação do salão largo na edilícia de base da península Ibérica, séculos VI–X, segundo Felix Arnold, 2017. Da esquerda para a direita e de cima para baixo: Cartagena, séculos VI–VII; Puig Rom (Girona), séculos VI–VII; Vilaclara (Barcelona), século VII; Gózquez de Arriba (Madri), séculos VIII–IX; Castillo de Peñaflor (Jaén), séculos IX–X; Pechina (Almería), século X; Medina Azahara (Córdoba), século X
Figura 46: Processo tipológico de formação do salão largo na edilícia de base da península Ibérica, séculos VIX, segundo Felix Arnold, 2017. Da esquerda para a direita e de cima para baixo: Cartagena, séculos VIVII; Puig Rom (Girona), séculos VIVII; Vilaclara (Barcelona), século VII; Gózquez de Arriba (Madri), séculos VIIIIX; Castillo de Peñaflor (Jaén), séculos IXX; Pechina (Almería), século X; Medina Azahara (Córdoba), século X

No início da Idade Média, a casa de tipo romano no Mediterrâneo ocidental deu lugar à casa com pátio e salão largo (fig. 46). Esse salão lembra o pastas da casa grega; ele era usado para várias funções sociais e familiares, o que dá a entender que a casa passou a ser um espaço mais recluso da família, sem muita abertura para estranhos. O salão largo estava disposto transversalmente ao pátio. Em geral, evitava-se a disposição axial da entrada ao salão que caracterizava a casa romana.Arnold, Islamic Palace Architecture in the Western Mediterranean, 30.

Todas essas casas tinham, geralmente, dois ou três pavimentos, que vão se desenvolvendo conforme configurações familiares específicas. Há variações com tipos mais complexos, como o “castelhano” (a casa-pátio da Península Ibérica), com soluções que não dependem tanto de diferenciações sociais: salão largo junto ao pátio, que se abre em largura (abandonando a axialidade romana).

Algumas particularidades podem se desdobrar em diferentes períodos, sendo interessante e útil para legitimar e entender processos históricos e demandas sociais, ambientais, etc. de diferentes sociedades no tempo. Ao contrário de tratá-las de forma genérica e entender suas necessidades mínimas.

Salões palacianos no Mediterrâneo ocidental

Desenvolvimento de um tipo espacial.


Nos palácios, o salão largo era substituído por um salão com colunatas laterais. Esse salão com colunatas, por sua vez, deu origem ao iwan com abside e alcovas laterais da tradição islâmica mais tardia.

Processo tipológico do salão palaciano com colunatas, segundo Felix Arnold, 2017
Figura 47: Processo tipológico do salão palaciano com colunatas, segundo Felix Arnold, 2017

Medina Azahara, Córdoba, 953–957. Planta do palácio superior, por Felix Arnold, 2017
Figura 48: Medina Azahara, Córdoba, 953–957. Planta do palácio superior, por Felix Arnold, 2017

Medina Azahara, Córdoba, 953–957. Elevação do salão superior, por Felix Arnold, 2017
Figura 49: Medina Azahara, Córdoba, 953–957. Elevação do salão superior, por Felix Arnold, 2017

Medina Azahara, Córdoba, 953–957. Esquema do cone visual no salão Rico, segundo Felix Arnold, 2017
Figura 50: Medina Azahara, Córdoba, 953–957. Esquema do cone visual no salão Rico, segundo Felix Arnold, 2017

Bibliografia

Arnold, Felix. Islamic Palace Architecture in the Western Mediterranean: A History. Oxford: Oxford University Press, 2017. https://search.ebscohost.com/login.aspx?direct=true&scope=site&db=nlebk&db=nlabk&AN=1481501.
Cahill, Nicholas. Household and City Organization at Olynthus. New Haven: Yale University Press, 2002.
Caniggia, Gianfranco. Lettura di una città: Como. [1963]. Roma: Centro Studi di Storia Urbanistica, 1984.
———. “Permanenze e mutazioni nel tipo edilizio e nei tessuti di Roma (1880–1930)”. Em Tradizione e innovazione nell’architettura di Roma capitale, 1870–1930, organizado por Giuseppe Strappa, 13–25. Roma: Kappa, 1989.
Caniggia, Gianfranco, e Gian Luigi Maffei. Il progetto nell’edilizia di base: composizione architettonica e tipologia edilizia: 2. Biblioteca di Architettura e Urbanistica. Venezia: Marsilio, 1987.
———. Lettura dell’edilizia di base. 2º ed. Firenze: Alinea, 2008.
Graham, J. Walter. “Origins and Interrelations of the Greek House and the Roman House”. Phoenix 20, nº 1 (1966): 3–31. https://doi.org/10.2307/1086313.
Muratori, Saverio. “Studi per una operante storia urbana di Venezia. I”. Palladio IX, nº 3–4 (julho de 1959): 97–209.
Strappa, Giuseppe, Paolo Carlotti, e Alessandro Camiz. Morfologia urbana e tessuti storici = urban morphology and historical fabrics: il progetto contemporaneo dei centri minori del Lazio = contemporary design of small towns in Latium. T+A Territori. Roma: Gangemi Editore, 2016.
Westfall, Carroll William. “Building Types”. Em Architectural Principles in the Age of Historicism, organizado por Carroll William Westfall e Robert Jan van Pelt, 138–67. New Haven: Yale University Press, 1991.

Atualizado em: