Ordem e lugarPermalink
A arquitetura organiza o ambiente humano por meio da construção. Essa organização não tem a ver com impor uma rigidez geométrica, mas com os princípios de ordem emergente que atendem às expectativas da percepção do ser humano e da socialização nas diferentes culturas. Esse é um processo global de ordenamento que vai da ocupação do território numa região inteira até a escala dos detalhes construtivos. Por isso, a nossa primeira aproximação ao estudo da arquitetura tradicional vai ser observar a produção de ordem emergente nas várias escalas de ocupação do espaço pelas sociedades.
AmbientePermalink

Reconhecer, ocupar e organizar um lugar no mundo. Essa é uma das mais fundamentais razões de ser das comunidades humanas. Por natureza, a nossa espécie tende a ocupar todos os espaços disponíveis na Terra; desde as origens da humanidade, mais de 200 mil anos atrás no leste da África, as nossas tribos têm migrado e se adaptado a todas as regiões e climas do mundo (fig. 1).
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Por sinal, a interpretação hegemônica sobre a origem do Homo sapiens está em revisão constante. No final do século XIX e na primeira metade do século XX, as teorias multirregionais eram dominantes. Essas teorias postulavam que a humanidade moderna evoluiu separadamente em diversas regiões desde a mais remota antiguidade; essas teorias eram usadas para justificar diferenças e hierarquias entre diferentes raças humanas. A partir da década de 1960, a teoria monofilética se tornou dominante; essa teoria também é conhecida como “modelo da origem africana recente” e defende que a nossa espécie se formou somente no leste da África entre 300 e 200 mil anos atrás. No entanto, descobertas arqueológicas e pesquisas genéticas recentes mostram que essa população singular de Homo sapiens assimilou outras espécies humanas ao longo da sua expansão na África, Ásia e Europa.
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A maneira humana de compreender o ambiente à sua volta e de organizar
um lugar nesse ambiente é a chave para a nossa adaptação às condições
mais variadas. Essa capacidade vem dos desafios ambientais na paisagem
variada e instável nas savanas do leste da África,Buras, The Art of Classic Planning.
a região de origem do gênero humano (fig. 2).
A evolução biológica transformou a visão no nosso sentido dominante, mas também nos deu a capacidade de reconhecer padrões no espaço e de guardar esses padrões na memória, para além do nosso campo de visão imediato. Ela nos condicionou a procurar lugares altos e protegidos, como a linha de cumeada do vale do Rift, que é chamado com razão de “berço da humanidade” (fig. 3). A ocupação da linha de cumeada oferece uma posição de reconhecimento da paisagem e de controle sobre o território (fig. 4).

PercursosPermalink
A linha de cumeada é um percurso eficiente para as pessoas se
orientarem e controlarem o território amplo que a comunidade precisa
explorar para o seu sustento. Só que o cume do relevo é muito exposto e
longe da água. Por isso, as comunidades procuram controlar os
percursos de cumeada principais do território, mas elas estabelecem os
seus assentamentos num nível mais baixo, nas cumeadas
secundárias.Strappa, “Lettura del territorio”.
Alguns dos vestígios arqueológicos mais antigos de habitações humanas ocupam essa posição na cumeada secundária. Essa tendência se intensificou a partir do paleolítico superior, o período mais recente do que se chama informalmente de “idade da pedra lascada” ou ainda de “idade das cavernas” (fig. 5).

SítiosPermalink
O paleolítico não é um recorte cronológico propriamente dito, mas um indicador de tecnologias e modos de vida em diferentes sociedades, algumas delas vigentes até hoje. As comunidades do paleolítico superior costumam ter entre 50 e 500 membros. Elas tendem a viver de modo mais ou menos sedentário, isto é, em povoações permanentes num mesmo lugar durante no mínimo uma estação e até no máximo alguns anos. Isso implica uma escolha premeditada e muito cuidadosa do sítio onde a povoação vai se estabelecer.
No sítio de Kostyonki, no atual sudoeste da Rússia, o rio Don corre de norte a sul formando um vale de meandros com mais ou menos 2 quilômetros de largura. As encostas em volta do vale são suaves, mas sulcadas pela erosão de dezenas de riachos afluentes do rio Don. As linhas de cumeada principais seguem paralelas ao rio, que corre do norte para o sul, a uma distância de 2 a 3 quilômetros da borda do vale. fig. 6
Entre as gargantas dos afluentes, uma série de linhas de cumeada secundárias se ramifica partir da linha de cumeada principal. 14 mil anos atrás, as comunidades do paleolítico superior estabeleceram os seus acampamentos perto do final dessas cumeadas secundárias, logo acima do vale (fig. 7).

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Cada acampamento era formado por algumas cabanas alongadas.Grigor’ev, “A New Reconstruction of the
Above-Ground Dwelling of Kostenki”; Jarzombek, Architecture
of First Societies, 23.
A implantação no final das cumeadas secundárias
dava um certo grau de proteção e de controle visual sobre todo o vale.
Ao mesmo tempo, os acampamentos não eram longe da água e dos campos de
caça e coleta no fundo do vale (fig. 9).

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A organização do território pelos primeiros habitantes humanos no paleolítico superior não era simplesmente uma resposta de circunstância às necessidades particulares do modo de vida caçador–coletor. Essa organização persiste e se consolida ao longo dos milênios. A rodovia que passa perto de Kostyonki ainda segue o mesmo percurso pela linha de cumeada principal, e a cidade moderna ocupa a mesma área no sopé das cumeadas secundárias (fig. 10).
No sul da Inglaterra, o Ridgeway (fig. 11) é um percurso de cumeada pré-histórico que continuou a ser o principal eixo de referência e circulação pelo menos até a construção das estradas romanas no século I d.C. Hoje em dia, é uma trilha de caminhada bastante popular.


Já em regiões muito montanhosas, como a Itália, os percursos de cumeada secundários tendem a se alongar muito. Um desses percursos secundários termina nas colinas que formam o sítio de Roma (fig. 12).
TerritóriosPermalink
Na sequência, a implantação do assentamento determina um raio de ação da comunidade. Ou melhor, vários raios de ação, segundo as várias necessidades — caça, coleta, aquisição de matéria-prima para ferramentas e gestão de resíduos, por exemplo.
Esses raios de ação foram conceituados nas décadas de 1960 a 80 pelo
arqueólogo americano Lewis Binford.Binford, “The Archaeology of Place”.
Os raios de ação diferenciados da coleta
cotidiana, por um lado, e das expedições de caça que duram vários dias,
por outro, definem um zoneamento econômico do território (figs. 13,
14).


Escolha do sítioPermalink
A escolha do sítio, como vimos, é deliberada. Ela se repete em praticamente todas as implantações de territórios em sociedades que são, pelo menos em parte, caçadoras e coletoras. Os sítios privilegiados por caçadores–coletores, por sua vez, continuam sendo relevantes para sociedades que estabelecem assentamentos permanentes e praticam manejo florestal intensivo ou agricultura.

Esse é o caso do território kuikuro no alto rio Xingu desde o século
XIII.Heckenberger, “Amazonia 1492”.
Nos vestígios arqueológicos mais antigos, as
povoações dominantes se encontravam distribuídas a distâncias regulares,
com povoações menores entre elas (fig. 15). O sistema de povoações era
estruturado por caminhos largos nas linhas de cumeada.
O teko’á é o território imediato controlado por uma aldeia
guarani (fig. 16). A aldeia é estabelecida no final da cumeada
secundária, perto da água mas fora do alcance das cheias do rio. Ela
controla um perímetro de lavoura e de floresta manejada no seu entorno
imediato.Araujo de Souza, Victal, e Sabaté Bel, “Lógica de
organização territorial guarani”; Soares, Guarani.

Os vários teko’á que formam uma aliança política são organizados em volta de percursos estruturantes nas cumeadas do terreno, entre os rios maiores (fig. 17). Esse território político é chamado de guará.




Figura 18: Diagrama da formação de cidades-estado no Egito neolítico, segundo Kemp
A implantação de povoações na extremidade das cumeadas secundárias
permite o controle visual e estratégico de um território bastante amplo.
Com o desenvolvimento da agricultura em várias regiões do mundo, essas
povoações se adensam. Então, o senso intuitivo de um território
controlado por cada comunidade vai se transformando no desenho de
fronteiras mais ou menos estáveis entre cidades-estado.Kemp, Ancient Egypt.
Isto é, a definição institucionalizada do
território vem antes de uma hierarquização social e política
muito pronunciada (fig. 18). Essa territorialidade é uma característica
fundamental do processo de urbanização.
ConclusãoPermalink
Todas as escalas de produção do ambiente tradicional são organizadas à semelhança do território, em estágios sucessivos de ocupação e preenchimento do espaço. A organização do território segue, predominantemente, as formas orgânicas da topografia e vegetação existentes. Quanto mais descemos dessa escala do território para a de assentamentos, construções e detalhes, mais o uso de traçados reguladores e proporções ganha importância.
Preferência temporalPermalink
Até aqui, falamos de dois aspectos gerais da arquitetura tradicional: a organização do espaço e as proporções como instrumento do processo construtivo. Esses aspectos são ainda bastante abstratos e não passam, afinal, de princípios gerais que sequer nos ajudam a distinguir entre arquitetura tradicional e arquitetura moderna. Para fazer essa distinção, nós temos que olhar para o consumo de energia na cadeia produtiva e como esse consumo influencia a gestão do tempo em diferentes sociedades.
Preferência temporal e preferência localPermalink

A arquitetura tradicional consome muito trabalho manual e um pouco do combustível disponível na natureza — sobretudo água e fogo de lenha. Já a arquitetura moderna usa uma cadeia de usinas, máquinas e instalações movidas predominantemente a combustíveis fósseis, e em contrapartida poupam trabalho manual (fig. 19). Essa distinção vai resultar em atitudes diferentes, por um lado, quanto à vida útil das construções no tempo e, por outro lado, quanto à relação dessas mesmas construções com o clima e o sítio físico. As diferenças de atitude com respeito ao tempo são conhecidas, na ciência econômica, como preferência temporal. Já as diferenças de atitude com respeito ao lugar não têm propriamente um nome, mas para efeito de comparação vamos chamá-las de preferência local.


O arquiteto britânico Barnabas Calder, no seu livro recente
Arquitetura da pré-história à urgência climática (figs. 20,
21), defende que a capacidade de gerar e consumir energia foi um dos
fatores preponderantes nas transformações nos modos de construir ao
longo da história.Calder, Architecture.
Assim como todo o nosso modo de vida contemporâneo, a arquitetura moderna é uma indústria de altíssimo consumo de energia. Duas revoluções energéticas cruciais aconteceram nos últimos trezentos anos: primeiro, com a Revolução Industrial, a força de trabalho manual e a energia diretamente fornecida pela natureza (fig. 22) foram substituídas por máquinas movidas a combustíveis fósseis; segundo, desde o final do século XIX, a necessidade de construir edifícios adaptados ao clima foi substituída pela capacidade de consumir energia para aquecer e refrigerar qualquer tipo de espaço em qualquer clima.
A capacidade de gerar e consumir qualquer quantidade de energia que se faça necessária — e que seja economicamente viável — é o que caracteriza as sociedades industrializadas modernas. Nessas sociedades, a energia pode ser extraída do ambiente em quantidades quase ilimitadas. A nossa energia é gerada a partir de fontes fósseis, como o carvão ou o petróleo, atômicas (fig. 23) ou renováveis, como a eletricidade produzida em turbinas hidráulicas e eólicas ou em painéis fotovoltaicos. Essa energia industrial, por assim dizer, é relativamente barata, e em proporção a isso, a força de trabalho manual acaba por se tornar relativamente cara.
Na sociedade industrial, portanto, a produção pode, em geral, ser ampliada conforme a demanda. É verdade que a construção civil tem um gargalo de longo prazo, que é a quantidade de arquitetos, engenheiros e operários qualificados que estão ativos no mercado. Ainda assim, mesmo a indústria da construção tem uma certa flexibilidade para acelerar a produção sempre que existir uma demanda correspondente.
Em contraste com a nossa sociedade industrial, nas sociedades
tradicionais ou pré-industriais, a energia que pode ser extraída do
ambiente é bastante limitada.Calder, Architecture.
O vento e a correnteza dos rios podem até mover
moinhos (fig. 24), mas não podem, por exemplo, ser escalados o
suficiente para mecanizar a produção de mais moinhos. O calor e o vapor
que podem ser gerados a partir da queima de madeira, por outro lado, são
diretamente limitados pela superfície de florestas que uma comunidade é
capaz de manejar na prática e no longo prazo, além do que, a própria
possibilidade de converter calor e vapor em trabalho é muito limitada
quando não se tem acesso a materiais industrializados, como o aço.
Durabilidade da arquiteturaPermalink
Onde for custoso gerar energia a partir do ambiente, o trabalho vai ser proporcionalmente mais barato. Isso significa que compensa usar a força bruta, humana ou animal, em várias tarefas que, nas sociedades industriais, tendem a ser mecanizadas. Mas isso implica, também, que o trabalho artesanal especializado é mais acessível e difundido do que numa economia baseada na indústria de massa.
Ao contrário das máquinas, que podem ser produzidas em escala para atender a qualquer demanda, o trabalho humano é limitado pela população local e, mais ainda, pela capacitação técnica dos profissionais especializados. Ou seja, a produção industrial pode ser ampliada tanto quanto os recursos econômicos o permitirem; já a produção artesanal tem uma capacidade mais ou menos fixa para cada comunidade.
Essa capacidade produtiva fixa faz com que a variável dependente na construção tradicional seja o tempo. O tempo que se leva para construir um edifício tradicional tende a ser proporcional ao seu tamanho e ao refinamento da construção. Portanto, o volume e a complexidade das construções que uma sociedade vai realizar depende em grande parte do tempo de trabalho que essa sociedade quer investir nas suas construções.
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O conceito de “preferência temporal” é usado em várias ciências
sociais para falar sobre a atitude das pessoas com respeito a ações que
dependem da passagem do tempo. Na psicologia cognitiva, a “recompensa
adiada”, ou seja, a disposição em abrir mão de uma gratificação imediata
em prol de um benefício maior no longo prazo, é considerada como um
estágio no desenvolvimento mental da criança e às vezes como um sinal de
inteligência em outros animais.Carvalho, Pocinho, e Silva, “Comportamento
adaptativo e perspectivação do futuro”; Miller et al.,
“Delayed Gratification in New Caledonian Crows and Young
Children”; Beran e Hopkins, “Self-Control in Chimpanzees
Relates to General Intelligence”.
Para além dessa perspectiva centrada no comportamento do indivíduo, o
conceito de preferência temporal é especialmente importante na análise
econômica de processos na escala da sociedade como um todo,Frederick, Loewenstein, e O’donoghue, “Time
Discounting and Time Preference”.
inclusive da construção. Para comunidades
seminômades que vivem em regiões onde a matéria-prima para a construção
de abrigos é abundante, não faz sentido investir na complexidade nem na
durabilidade das suas construções. As aldeias da etnia Bagyeli, na
África equatorial (fig. 25), portanto, têm uma estrutura bastante
engenhosa mas muito rápida de se erguer. Elas são feitas para durarem
alguns meses e a aldeia pode ser simplesmente abandonada depois desse
tempo, permitindo a regeneração da floresta no local.Jarzombek, Architecture of First
Societies.


Pelo contrário, sociedades seminômades que vivem em regiões onde a matéria-prima para os seus abrigos é escassa tendem a investir muito tempo e trabalho para refinar habitações leves e portáteis. É o caso de muitos povos que vivem em estepes, como as diversas etnias da Sibéria e da Mongólia, assim como os povos das planícies da América do Norte. fig. 26
Transmissão entre geraçõesPermalink
Sociedades totalmente agrárias e sedentárias tendem a investir ainda
mais tempo e trabalho nas suas construções, ou seja, a terem uma
preferência temporal baixa — elas constroem para o longo prazo. Apesar
de terem existido comunidades de caçadores-coletores que construíram
habitações permanentes e até mesmo arquitetura monumental,Dietrich et al., “Cereal Processing at Early
Neolithic Göbekli Tepe, Southeastern Turkey”.
esse tipo de produção é mais característico de
comunidades que se organizam em torno de um planejamento para conservar
ou mesmo multiplicar o valor dos ativos no longo prazo.Galor e Özak, “The Agricultural Origins of Time
Preference”.
Sempre que uma sociedade produz o seu ambiente construído com uma preferência temporal baixa, existe alguma forma de propriedade privada e de transmissão da casa familiar por herança. A preferência pelo longo prazo implica que se vai dedicar um esforço considerável para construir não só os grandes monumentos representativos do poder político e religioso, mas até as moradias da população de todas as classes sociais. Construir uma casa que vai ficar de pé durante séculos é, portanto, investir não só no conforto imediato, mas sobretudo na qualidade de vida futura dos filhos e netos.

Outra consequência da arquitetura com preferência temporal de longo
prazo é uma grande estabilidade do ambiente construído que cada geração
vivencia. Como os edifícios duram muito, a paisagem urbana e rural muda
pouco durante a vida de cada pessoa. A identificação afetiva e cultural
com as paisagens que parecem ter existido desde sempre é conhecida como
topofilia. Esse é um conceito que foi cunhado na literatura
pós-romântica, já perto da metade do século XX; ela passou a ser usada no contexto da
arquitetura com o pós-modernismo, na segunda metade do século, e
sobretudo a partir da publicação dos livros Poética do espaço,
pelo filósofo francês Gaston Bachelard (fig. 27),Bachelard, A poética do espaço.
e Topofilia, pelo geógrafo americano
Yi-Fu Tuan (fig. 28).Tuan, Topofilia.

Responsabilidade ambientalPermalink

Mas, se construir com preferência temporal baixa é característica de sociedades sedentárias e com sistemas de propriedade privada, o que aconteceu com a arquitetura depois da Revolução Industrial? Não é nenhum segredo que a vida útil dos edifícios não para de cair (fig. 29), mesmo que a indústria venha desenvolvendo materiais com desempenhos cada vez melhores (pelo menos no papel).
A qualidade dos materiais industrializados é uma das chaves para compreendermos esse processo. Como já vimos, a disponibilidade de energia nas sociedades industriais é incomparavelmente maior do que a das sociedades agrárias e artesanais. Na arquitetura, isso quer dizer que as construções produzidas pela mão dos artesãos foram substituídas por montagens cada vez mais mecanizadas de componentes até certo ponto industrializados (fig. 30) — o fato de que as construções são “menos” industrializadas do que carros ou máquinas de raios X não importa tanto, a questão é a tendência.

Ora, mas se a construção está cada vez mais industrializada, por que ela dura menos? Justamente porque uma indústria capaz de fabricar qualquer quantidade de produtos em qualquer tempo tende a assumir uma preferência temporal alta. Se a sociedade industrial contemporânea é capaz de produzir muito mais metros quadrados de construção em muito menos tempo, a preocupação com a manutenção acaba sendo secundária (fig. 31). O ciclo de financiamento do mercado imobiliário atual é baseado na rentabilidade de curto prazo. Conservar os ativos imobiliários no longo prazo não é um fator determinante na organização da cadeia produtiva.

E onde entra o discurso da sustentabilidade nessa lógica de preferência temporal alta? Bom, os componentes de uma construção têm desempenho certificado quando saem da fábrica, mas o tempo pelo qual eles mantêm esse desempenho parece ser sempre superestimado. Por causa disso, mesmo com todo o discurso da sustentabilidade que vem se impondo desde a década de 1970, as emissões de CO2 da cadeia produtiva da construção civil estão crescendo cada vez mais rápido (fig. 32).
Consequências econômicasPermalink
É claro que essa aceleração contínua da produção industrial e do
descarte de produtos industrializados tem consequências, especialmente
quando esses produtos são edifícios cada vez maiores. E eu não estou nem
falando do passivo ambiental genérico dessa gigantesca pegada de
carbono.Keong, “Chapter 1 - Introduction”.
Não, as pessoas já estão começando a sentir um
baque econômico mesmo; a crise imobiliária de 2008 foi só um solavanco
especialmente forte numa tendência mais ampla de declínio na qualidade
do universo habitacional industrializado. No final do século XX e início do XXI, várias nações ocidentais chegaram a um
ponto inédito, desde o ciclo de crescimento econômico que começou com a
Revolução Industrial, em que os filhos vão ter menos riqueza acumulada
do que os seus próprios pais.
A preferência temporal alta da construção moderna, portanto, resulta numa arquitetura com valor de consumo imediato — tanto porque essa arquitetura é possível graças ao aporte de energia da indústria, quanto porque a lógica de financiamento contemporânea favorece esse modelo de rentabilidade no curto prazo. O ônus desse modelo, por outro lado, é despejado sobre o meio ambiente, mas também sobre as gerações futuras. Por isso, cabe a reflexão: não será possível, e mesmo necessário, para lidar com a crise climática e a crise de declínio no patrimônio das gerações futuras, retornar para uma arquitetura de baixa preferência temporal? Uma arquitetura produzida lentamente, mas que volte a durar séculos?
Alegoria da cabana primitivaPermalink
Nos tratados de arquitetura, o mito de origem da construção é apresentado como uma alegoria da condição humana em geral e do ofício da arquitetura em particular. Essa origem sempre parte de uma comunidade ou de um indivíduo que aprende a imitar o funcionamento da Natureza para desenvolver uma técnica construtiva. A matéria-prima é a justificativa mais adequada para uma taxonomia da tipologia construtiva porque as características dos materiais são determinantes para as propriedades dos sistemas construtivos. Nessa taxonomia, a madeira é o material de construção por excelência, e a cabana primitiva é a sua expressão mitológica. O mito da cabana primitiva aparece em três versões famosas, que vamos analisar junto com o registro arqueológico.
As árvores são o material de construção por excelência. Todas as
espécies de hominídeos, dos orangotangos (fig. 33) aos gorilas,
chimpanzés (fig. 34) e humanos, usam as árvores como material e,
eventualmente, suporte para construir os seus abrigos. Isso indica que a
prática de construir com galhos de árvores pode remontar a até 10
milhões atrás, ao último ancestral comum dos hominídeos.Fruth, “Great Ape Nest-Building”.


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Entre os humanos, os vestígios mais antigos de abrigos podem ter de
15 a 380 mil anos (figs. 35, 36). A espécie humana é a única entre os
primatas a usar abrigos coletivos, e também a única a construir uma
cobertura completa sobre o abrigo. Hoje em dia, todas as comunidades
humanas, mesmo as caçadoras-coletoras, reutilizam os mesmos abrigos por,
no mínimo, alguns dias a fio.Venkataraman et al., “Hunter-Gatherer Residential
Mobility and the Marginal Value of Rainforest Patches”.
Além disso, os nossos abrigos muitas vezes são construídos com algum objetivo social, funcional ou cultural que não a proteção simples e imediata do corpo humano. Em vários modos de vida vigentes até hoje, tanto de sociedades caçadoras-coletoras quanto de comunidade pastoris e agrárias, é bastante comum as pessoas trabalharem e mesmo descansarem ao relento (fig. 37).
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Abrigo e comportamento simbólicoPermalink

Nesses casos, as construções servem como depósitos utilitários ou ainda como suportes simbólicos para as identidades familiares dentro da comunidade. Em suma, o abrigo humano tradicional sempre é um lar no sentido cultural da palavra.
Esse é o caso nas aldeias dos povos San, no sul da África, onde cada
casa pertence a uma família nuclear (fig. 38). A posição da cabana serve
para estabelecer as relações entre famílias dentro da aldeia, mas a
construção não é usada nem para as atividades cotidianas e nem mesmo
para dormir.Jarzombek, Architecture of First
Societies.
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Esse comportamento social e simbólico contrasta com o dos outros
hominídeos, que quase sempre constroem um novo abrigo a cada noite, e
usam esse abrigo exclusivamente para repouso de um único
indivíduo..Fruth, “Great Ape Nest-Building”.
A diferença entre a mobilidade da maioria dos
hominídeos em todo o seu território e o apego dos humanos a um sítio
central só foi confirmada no século XX,
mas ela está na base de mitos de origem da arquitetura, como a alegoria
da cabana primitiva segundo Vitrúvio.
O grau zero da arquitetura representado pela estrutura mais
simples possível em madeira comparece num tipo peculiar de construção da
cultura Jōmon. Essa construção é chamada simplesmente de estrutura com
seis pilares, e comparece no sítio arqueológico de Sannai Maruyama, no
extremo norte da ilha de Honxu (fig. 39).Jarzombek, Architecture of First Societies,
152–58.
Não é possível determinar, hoje em dia, a função e
a configuração precisa dessas estruturas. A reconstituição executada no
final do século XX (figs. 41, 42) é uma
conjetura baseada na posição das fundações e nos vestígios de madeira
preservados graças ao terreno pantanoso do local. A estrutura dessas
construções é inteiramente feita em toras e troncos roliços de carvalho;
todas as construções eram orientadas aproximadamente na direção
leste–oeste.


Figura 39: Esquema do sítio arqueológico de Sannai Maruyama, cultura Jōmon, 3900–2300 a.C.. a – Situação no território das sociedades pré-históricas que construíram habitações semienterradas, b – Locação junto à baía de Mutsu, atual município de Aomori, Japão



Figura 42: Reconstituição de uma estrutura com seis pilares, sítio arqueológico de Sannai Maruyama, cultura Jōmon, c. 2600 a.C. Fotos:. a – Koike Takashi, 2008, b – Iwanami Riku, 2015
A alegoria da cabana primitiva é um expediente para enfatizar o quanto a arquitetura tradicional é uma expressão direta da construção. A cabana primitiva não tem necessariamente a ver com alguma cultura considerada “primitiva” em particular, e sim com o conceito de uma construção reduzida às suas mínimas necessidades. Ela é sempre pensada como uma montagem simples e racional de elementos em madeira. Por isso, o estudo de uma cabana primitiva qualquer é uma boa porta de entrada para a prática da arquitetura tradicional.
Arquitetura e sociedadePermalink
VitrúvioVitrúvio, Tratado de arquitetura, II, i.
especulava que o domínio sobre o fogo permitiu aos
homens antigos deixarem de viver como “animais selvagens” e passarem a
se organizar em sociedade. O relato vitruviano é o tema de uma série de
pinturas de Piero di Cosimo no final do século XV (fig. 43). A construção de abrigos (fig. 44)
era, para Vitrúvio, um trabalho necessariamente coletivo e que,
portanto, só poderia existir em volta do lar — da fogueira familiar ou
comunitária.



A origem social da construção foi sendo esquecida aos poucos pelos
tratadistas do Renascimento, até ser completamente invertida em 1753
pelo padre jesuíta francês e teórico da arquitetura Marc-Antoine Laugier
(fig. 45). O mito da cabana primitiva, na versão de Laugier, relata o
raciocínio individual de um homem que tem a intuição de construir
observando as árvores.Laugier, Essai sur l’architecture.
Só depois da construção solitária é que se forma
uma comunidade para usufruir do abrigo.
Arquitetura e racionalismoPermalink
A diferença entre o mito da cabana primitiva que Vitrúvio contou no século I a.C. e o mesmo mito na versão de Laugier, no século XVIII, é a diferença entre o conceito tradicional de sociedade, vigente na Antiguidade romana, e o individualismo moderno, que se manifesta primeiro no Iluminismo filosófico e político, e mais adiante no Romantismo artístico. Laugier era um pensador iluminista justamente porque ele partilhava o ideal de primazia do indivíduo com outros autores da sua época, como Rousseau e Voltaire, que aparece aqui sendo celebrado num salão elegante (fig. 46). Esses autores consideravam que a razão é uma faculdade inata e imutável da humanidade — desde que ela pudesse ser exercida livremente, isto é, em caráter estritamente individual.



A sequência do argumento de Laugier deixa clara a sua semelhança com
a alegoria do “bom selvagem” de Rousseau: segundo Laugier, a arquitetura
atinge o seu auge pouco tempo depois da época da cabana primitiva
(fig. 47), na Grécia antiga (no século XVIII a cronologia da pré-história e mesmo a do
Mediterrâneo antigo ainda não estavam muito bem estabelecidas). Depois
disso, a arquitetura degenera pouco a pouco por força de hábitos
adquiridos e dos vícios introduzidos pelas convenções sociais.Laugier, Essai sur l’architecture.
Para Laugier, o fundo do poço da arquitetura era a
“licenciosidade” do barroco e do rococó (fig. 48). Na prática, Laugier
disfarçava uma preferência estética pela clareza visual das colunatas
clássicas e neoclássicas como um argumento pela superioridade racional
de um retorno às origens da arquitetura.


As implicações políticas do individualismo iluminista são bem conhecidas, e desembocam na Revolução francesa a partir de 1789, com a tentativa de formar um sistema de governo baseado na igualdade de direitos (fig. 49). Já as consequências artísticas dessa celebração do individualismo são mais complexas. De uma apologia da razão individual, no neoclassicismo, a arte acabou descambando para uma idolatria da emoção individual no Romantismo (fig. 50). Nos dois casos, o momento de maior pureza de um conceito ou sensação é aquele que está na origem, tida como mais autêntica ou espontânea.
O argumento iluminista e romântico ia no sentido oposto ao de Vitrúvio. Para os antigos romanos, a sociabilidade, e especialmente o consenso num meio-termo justo, estavam na origem de todo progresso, e esse progresso sempre seria atingido por uma sequência gradual de refinamentos sucessivos… ou quase sempre (fig. 51). Vitrúvio não estava elogiando a pureza formal ou conceitual da cabana primitiva: esses são princípios revolucionários e modernos. Em vez disso, Vitrúvio sustentava uma tese tradicional: a de que o trabalho constante, no respeito das convenções sociais, conduz à melhoria contínua dos processos e dos resultados. O ideal romano de um processo social que se desdobra ao longo do tempo vai ser revisitado, e deformado, na segunda metade do século XIX.

Arquitetura e antropologiaPermalink
A terceira versão do mito da cabana primitiva foi contada pelo
arquiteto alemão Gottfried Semper (fig. 52) num artigo de 1851
intitulado “Os quatro elementos da arquitetura”.Semper, Die vier Elemente der Baukunst.
Semper se inspirou numa cabana de índios karib (fig. 53) que ele
tinha visto na exposição universal de Londres, aquela do palácio de
Cristal.Semper, Der Stil in den technischen und
tektonischen Künsten, oder, Praktische Aesthetik.
Como a maioria dos europeus do seu tempo, Semper
considerava que uma sociedade dita “primitiva” no século XIX seria comparável a uma comunidade do
passado remoto, nas origens da humanidade.
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No século XIX, esse pressuposto colonialista era perfeitamente compatível com as opiniões modernas e progressistas que Semper tinha sobre outros assuntos (e foi justamente por causa desse progressismo que ele teve que se exilar da Alemanha, e foi parar na Inglaterra na mesma época que os seus compatriotas mais famosos, Marx e Engels). No caso da cabana primitiva, Semper levou o mito das origens às últimas consequências de um modo que não era concebível para Vitrúvio ou Laugier. Isso porque Semper foi contemporâneo do grande ímpeto de construção com estrutura portante em ferro fundido, independente da vedação das paredes, como nas bibliotecas que Henri Labrouste construiu em Paris (figs. 54, 55).
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A possibilidade de separar a estrutura da vedação era uma coisa praticamente inédita na arquitetura erudita da Europa pelo menos desde a Grécia arcaica, depois do século VIII a.C. Foi a realidade tecnológica do esqueleto estrutural moderno que permitiu a Semper pensar a separação conceitual entre estrutura e vedação. E essa separação nos dá dois dos quatro elementos da cabana primitiva na versão de Semper.

Os quatro elementos da arquiteturaPermalink
Só que esses dois elementos, a realização construtiva da cabana, são secundários para Semper. Assim como Vitrúvio, ele colocava o fogo em primeiro lugar, mas explicitava a sua posição central como o lar que dá origem à habitação primitiva. E esse lar implicava, por sua vez, a organização do espaço como uma plataforma separada do chão. Os quatro elementos de Semper têm, portanto, uma hierarquia clara:
- Lar
- Plataforma
- Estrutura e cobertura
- Vedação
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Os quatro elementos se resumem, no fim das contas, às três partes da arquitetura que já encontramos em Vitrúvio, só que numa ordem diferente: primeiro, vem a organização social do espaço; só depois, a construção vem dar abrigo a essa organização; por último, o espaço e a construção são decorados pela superfície da vedação.
- Utilitas = Lar e Plataforma
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Espaço socialmente organizado
- Firmitas = Cobertura
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Construção
- Venustas = Vedação
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Beleza e, mais especificamente, decoro
Essa última parte deriva de um jogo de palavras em alemão, que Semper aproveitou a seu favor (e ele não foi nem o primeiro, nem o último alemão a fazer isso; a etimologia tem essa capacidade de simular alguma verdade profunda). A palavra Wand, que quer dizer parede, é cognata do verbo winden, que significa tecer uma guirlanda ou uma esteira com fibras vegetais. Como a vedação da cabana karib era feita de esteiras de palha, Semper propôs que as artes aplicadas — angewandte Künste em alemão — da tecelagem e da decoração de interiores teriam a mesma origem, e portanto que a vedação com paredes seria algo alheio à pura construção. Nisso, ele se aproximava um pouco da posição de Laugier em favor da clareza das colunatas.
As três versões do mito da cabana primitiva — de Vitrúvio, Laugier e Semper — respondiam a três buscas totalmente diferentes por um significado da arquitetura que pudesse ser encontrado nas origens do ofício. A evolução histórica era um progresso segundo Vitrúvio e Semper, uma decadência segundo Laugier, mas todos concordariam que se tratava de uma mudança de nível e não de essência. Esse progresso ou decadência se move sempre desde uma solução originária e impessoal de um problema humano geral para uma elaboração tardia, autoconsciente e autoral no ofício erudito da arquitetura.



Cabanas primitivas e modernasPermalink
A correspondência direta e necessária entre o sistema construtivo e a aparência arquitetônica é uma justificativa primordial em muitas teorias da arquitetura, tradicionais ou modernas. Mais ainda, a cabana primordial em madeira é um arquétipo constantemente reatualizado em rituais religiosos de várias culturas do mundo todo.
Um dos casos mais bem documentados é o de rituais xintoístas de
fertilidade no Japão; comunidades de fazendeiros constroem cabanas com
madeira verde, que são queimadas ao fim da celebração. Essa prática
popular foi documentada pelo antropólogo suíço Nold Egenter na segunda
metade do século XX.Egenter, Bauform als Zeichen und Symbol:
Nichtdomestikales Bauen im japanischen Volkskult.
Ela se assemelha a um ritual mais formalizado que
faz parte da sagração de cada imperador do Japão desde o século VII d.C.: nesse ritual, chamado
daijōsai (fig. 57), o novo imperador entra numa cabana em
madeira construída especialmente para partilhar uma refeição com a deusa
do Sol Amaterasu (representada por três objetos sagrados e um pilar
também em madeira).


Em todas as versões do mito ou do ritual da cabana primitiva, a madeira é o material de construção originário. Além de ser uma obviedade histórica e arqueológica, a madeira enquanto matéria-prima por excelência da construção tem uma utilidade crucial nesse mito: ela se presta a praticamente um único sistema estrutural, o esqueleto arquitravado de pórticos (isto é, pilares e vigas). Ao contrário de uma parede em alvenaria portante, que pode ser decorada com colunas, as estruturas em madeira só com muita dificuldade e desperdício de material conseguem imitar paredes de alvenaria. Com isso, a cabana primitiva em madeira funciona como o arquétipo mais característico da construção tradicional. É a partir desse arquétipo que vamos analisar, na sequência, a construção arquitravada.
Projeto e representaçãoPermalink
Agora que vamos começar um curso de arquitetura tradicional, nós temos que manejar as ferramentas próprias da arquitetura tradicional. Já vimos que a arquitetura moderna é diferente da tradicional no uso de materiais e processos construtivos industrializados. Também vimos como a relação entre tempo e lugar é diferente na visão tradicional e na moderna da arquitetura.
Visualizar a arquiteturaPermalink
É claro que tudo isso diz respeito acima de tudo aos materiais da construção e ao trabalho manual de construir, mas não é só isso. Para fazer arquitetura tradicional, nós temos que visualizar o projeto de um modo que nos faça prestar atenção aos elementos e aos processos construtivos tradicionais, isto é, artesanais. Os instrumentos que nós temos para visualizar a arquitetura, tanto a tradicional quanto a moderna, são os desenhos e as maquetes.
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Não vamos falar aqui sobre a realidade virtual porque essa forma de visualização é ela própria um produto gerado a partir de desenhos e maquetes.
Então, no que a visualização da arquitetura tradicional difere da visualização da arquitetura moderna? A principal diferença vem da própria diferença, que já vimos, entre a materialidade da construção tradicional e a abstração da arquitetura moderna.
A composição da arquitetura tradicional quer chamar a atenção para a materialidade da construção — as dimensões, as texturas e o peso dos materiais. Neste pavilhão do arquiteto contemporâneo Demetri Porphyrios (fig. 58), cada elemento construtivo expressa a força do seu material: colunas esbeltas em madeira, colunas espessas em tijolo; os caibros em madeira têm balanços amplos, já a plataforma em pedra se aproxima da forma estável de uma pirâmide.


O projeto arquitetônico moderno em geral, pelo contrário, abstrai essa materialidade e tenta fazer com que a construção pareça um conjunto de linhas e superfícies que podem ser manipulados arbitrariamente, talvez até à revelia da lei da gravidade.
No famoso pavilhão de Mies van der Rohe em Barcelona (fig. 59), os materiais são trabalhados de modo a quebrar a percepção da solidez construtiva: os pilares são cromados para refletirem a luz e ficarem menos visíveis, os blocos de travertino das divisórias formam uma grelha em vez de uma amarração de alvenaria, e as coberturas são lajes planas e finas que não remetem ao papel normal de um telhado, que é escorrer a água da chuva.
Essa diferença vai se refletir em algumas convenções ou costumes diferentes que seguimos para fazer desenhos arquitetônicos ou construir maquetes de edifícios tradicionais, por mais que as técnicas básicas sejam as mesmas do projeto moderno (figs. 60, 61). Vocês vão aprender essas técnicas básicas de desenho e maquete em outras disciplinas, portanto aqui vamos nos concentrar nas particularidades da arquitetura tradicional.


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Projeções lineares e paralelasPermalink
Toda visualização da arquitetura se baseia em como representar um edifício grande e em três dimensões num espaço reduzido e, no caso dos desenhos, em duas dimensões.
Projeção é o ato de se representar um objeto tridimensional em duas dimensões usando um método consistente. As crianças, por exemplo, costumam projetar construções, pessoas e outros objetos sempre mostrando uma vista frontal característica, mesmo quando a rua aparece em planta (fig. 62). Pode parecer estranho para os adultos, mas é consistente.


Uma das formas mais comuns de projeção hoje em dia é a perspectiva. Essa forma de representar a terceira dimensão no plano do desenho foi inventada várias vezes em diferentes culturas desde a Antiguidade, mas o método mais usado hoje em dia, a perspectiva linear com um ou mais pontos de fuga, foi inventado no início do século XV na Itália (fig. 63). A perspectiva linear é especialmente interessante para dar uma boa percepção volumétrica do espaço, mais até do que dos objetos; o ponto fraco da perspectiva linear, do ponto de vista mais analítico, é que não é possível medir comprimentos reais a partir das linhas oblíquas no desenho.
Outras projeções tratam de representar as três dimensões dos objetos no desenho, só que mantendo alguma consistência nas medidas e na orientação das linhas. Isto é, linhas paralelas entre si na realidade são representadas como paralelas entre si no desenho, em vez de convergirem para um ponto de fuga. Uma das mais usadas na arte tradicional é a projeção cavaleira, que é bastante característica da pintura chinesa (fig. 64).


Um método ainda mais consistente de se respeitar medidas de comprimento num desenho é a projeção axonométrica com os eixos cartesianos numa inclinação de 45° entre si. Esse tipo de projeção é bastante comum na pintura japonesa tradicional (fig. 65) mas também é muito usado no desenho de arquitetura contemporâneo. Ele permite tirar medidas corretas em todos os três eixos dimensionais.
O importante é entender que todas essas formas de projetar os objetos são convenções, ou seja, costumes. Esses costumes têm a ver tanto com tradições culturais quanto com as necessidades específicas de cada caso no que diz respeito às informações que precisamos extrair dos desenhos. Por exemplo, podemos achar que o desenho infantil da fig. 62 é um modo de representação que nós, adultos, temos que superar.
Mas essa projeção é perfeitamente válida se a nossa intenção for dar uma ideia da paisagem urbana, destacando alguns edifícios principais e mostrando a trama de casas em várias ruas ao mesmo tempo. Foi isso que o engenheiro militar Rocha Fragoso fez no Mappa architectural do Rio de Janeiro que ele publicou em 1874 (fig. 66).

Projeções ortográficasPermalink

Apesar de existir essa grande variedade de projeções possíveis, a
prática da arquitetura em quase todas as sociedades e culturas ao longo
da história tende a privilegiar um subconjunto bastante específico de
projeções. Essas projeções arquitetônicas são aquelas que talvez não
deem uma ideia tão intuitiva e imediata da forma tridimensional, mas
elas transmitem informações importantes para o processo construtivo de
modo preciso, claro e sistemático. Chamamos a essas projeções de
ortográficas porque elas rebatem o volume do objeto em planos
ortogonais uns aos outros, usando linhas de projeção perpendiculares a
cada um desses planosChing e Juroszek, Desenho para
arquitetos.
(fig. 67).
Para desenhar um edifício seguindo as convenções da arquitetura,
podemos posicionar os planos ortogonais do lado de fora do edifício,
como na fig. 67; isso vai gerar elevações, ou vistas verticais do
exterior do edifício, e a planta de cobertura, uma vista horizontal
tomada de cima. Além desses desenhos, temos duas outras representações
muito úteis para a arquitetura, onde os planos atravessam o edifício: a
planta (fig.


Figura 68: Francis D.K. Ching, esquema de projeções ortográficas com planos de projeção. a – planta, b – corte
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- Jogo rápido!
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Identifique as projeções paralelas dos desenhos que dão origem à planta e ao corte na fig. 68.
- Olho vivo!
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Repare como os planos de projeção da planta e do corte estão posicionados de modo a passarem pelos vãos das portas e das janelas.


Figura 69: Plantas com cotas em blocos de argila, Suméria, c. 2100–2000 a.C.. a – casa em Umma, Vorderasiatisches Museum, Berlim, b – templo? John Rylands Library, Universidade de Manchester JRL 0930
A planta é uma das formas de representação mais antigas e difundidas. Qualquer edifício complexo, em qualquer cultura, vai ser representado em planta antes de ser construído. A planta também é um instrumento cadastral muito difundido para documentar edifícios existentes com vários propósitos — não só para intervenções, mas também, por exemplo, com finalidades administrativas ou fiscais.
Conhecemos plantas de arquitetura datando de mais de 4 mil anos atrás, na antiga Suméria (fig. 69). Mesmo essas plantas sendo muito esquemáticas, elas mostram uma preocupação com a materialidade da construção: todas as paredes têm espessura, ainda que essas espessuras e os vãos das portas não pareçam muito bem proporcionados ou na escala correta.
Projeto e composiçãoPermalink
O senso de proporção e escala vai ser uma das características mais importantes do desenho arquitetônico tradicional, à medida que ele vai se desenvolvendo e se padronizando na Europa da Idade Média até a Idade Moderna. A escala precisa dos desenhos e a percepção da proporcionalidade entre as partes do edifício são importantes nesse contexto porque a arquitetura tradicional funciona à base de uma composição de elementos tangíveis, que podem ser tanto a matéria física da construção quanto as formas bem definidas dos espaços vazios.
Mas o que é composição? O conceito moderno de projeto faz
referência à transformação de requisitos abstratos (programa de
necessidades, ideologias) diretamente em forma arquitetônica.Piñón, Teoría del proyecto.
Em arquitetura tradicional, em vez de projeto
preferimos falar em composição: organizar e modificar formas ou
princípios formais preexistentes.Gabriel, Classical Architecture for the
Twenty-First Century.
Ao longo do tempo, os arquitetos pensaram em muitos sistemas para classificar e usar essas formas; o arquiteto pós-moderno Rob Krier apresenta na fig. 70 uma classificação possível baseada nas formas geométricas primárias que dão origem aos volumes. Ao longo deste curso, vamos ver alguns outros modos de classificar os elementos da arquitetura e da composição. Nenhum deles é intrinsecamente mais correto que os outros, mas alguns fazem mais sentido em determinados contextos culturais ou tecnológicos.


Figura 70: Rob Krier, arquétipos formais em Architectural Composition (1988). a – tipos primários, b – exemplos históricos
Método acadêmico de representaçãoPermalink
Sobre o modo de fazer arquitetura tradicional, já vimos que ele se baseia na manipulação de elementos materiais ou espaciais, e que esses elementos precisam ser dispostos com um senso de proporção e escala entre si e com as pessoas que estudam o desenho ou que usam o espaço. No século XIX, a Escola de Belas-Artes de Paris consolidou um método para projetar e representar a arquitetura que sintetiza esses requisitos num passo a passo prático:
1 Traçado regulador
O croquis lança o traçado regulador com as proporções gerais e a volumetria do conjunto, e conforme o caso a implantação no sítio. Desde já é importate ter um senso da ordem de grandeza dos espaços.
2 Esboço
É a etapa mais determinante da sequência; estabelece os elementos de arquitetura e da composição e suas dimensões e proporções específicas em planta, corte e fachada, assim como as proporções entre cheios e vazios e a modenatura que gera o jogo de luz e sombra nas elevações.
3 Estudo preliminar
Define o dimensionamento aproximado da estrutura e, com isso, confirma as relações de cheios e vazios lançadas no esboço. Resolve os detalhes construtivos, funcionais e decorativos do projeto. A paginação de piso e teto precisa ser definida aqui, antes de passar para a arte-final.
4 Épura
Calcula, confirma e cota as medidas e o traçado exato dos elementos construtivos. Esta etapa só existe em trabalhos de disciplinas técnicas específicas, geralmente acompanhado de memória de cálculo, ou no desenvolvimento de um projeto executivo.
5 Composição de prancha
Primeiro passo para fazer a arte-final. Nesta etapa se estabelece a escala definitiva de cada desenho. Por meio de croquis ou colagens, se estuda a disposição de todos eles na(s) prancha(s). O objetivo é reunir um conjunto claro e informativo, equilibrado entre vistas gerais e detalhes.
6 Arte-final
Em geral feita com base no estudo preliminar, passa a limpo e renderiza o projeto para entrega à banca examinadora ou ao cliente. A arte-final de um estudo preliminar não usa cotas, apenas escala gráfica e eventualmente calungas. Tradicionalmente, é feita a nanquim com cores e sombras em aquarela. Raramente usa perspectiva.
No esboço da loggia acima e na composição de prancha abaixo (fig. 71), vemos algumas das características principais da apresentação de desenhos no método acadêmico:

- Desenhos alinhados entre si para facilitar a reconstituição mental da volumetria;
- Entrada principal do edifício sempre voltada para baixo nas plantas, e para dentro da prancha nos cortes;
- Escala gráfica posicionada entre os desenhos, para facilitar a referência;
- Contraste forte entre a hachura dos planos de corte e os vazios dos espaços;
- Margem da prancha bem assertiva, com espaço generoso para a borda da folha.
- Carimbo da prancha forma parte da composição.
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- Escala gráfica e orientação do norte
- Desenhos convencionais
- Cortes sempre pelo eixo de simetria e passando pelos vãos
- No mínimo um corte perpendicular à elevação principal, em geral dois cortes
- Os cortes são tratados como elevações interiores
Estudo analíticoPermalink


Figura 72: Estudos analíticos reproduzidos em Harbeson, Study of Architectural Design. a – motivo central para um muro de jardim, por L. Licht, b – templo do Amor, por G. Roth
O estudo analítico, por sua vez, tem sido a porta de entrada no estudo do classicismo desde a organização do ensino na Academia de Arquitetura em Paris, no século XVIII, difundindo-se para o sistema as Escolas de Belas-Artes em dezenas de países, inclusive no Brasil, nos séculos XIX e XX (fig. 72).
Na Escola de Belas-Artes de Paris, no final do século XIX, o analítico era uma das provas de seleção
para o ingresso no curso de Arquitetura.Harbeson, The Study of Architectural Design;
Guadet, Éléments et théorie de l’architecture.
Na do Rio de Janeiro, no começo do século XX, era um dos primeiros exercícios
desenvolvidos pelos alunos ingressantes (fig. 73).
Os principais mestres da geração modernista dos anos 1920 — Le
Corbusier, Walter Gropius, Lucio Costa e muitos outros — estudaram sob
alguma influência do método Belas-Artes. Embora eles tenham instituído
teorias e sistemas de ensino opostos ao método Belas-Artes, a obra
desses arquitetos demonstra a disciplina, o rigor gráfico e a atenção
para proporções e detalhes, derivadas dos seus estudos
classicistas.Chitham, The Classical Orders of
Architecture.

Figura 73: Exemplos de desenhos analíticos de ordens clássicas, D.W. Bates. b – observe a representação das juntas entre os blocos de pedra