Princípios da construção murária

A construção murária resulta em estruturas que geralmente têm uma aparência de grandes massas sólidas, e que delimitam com muita clareza os espaços arquitetônicos. A taipa e a alvenaria são os principais sistemas de construção tradicional de paredes portantes. Eles consistem num uso mais ou menos processado de recursos minerais, na forma de massas contínuas, blocos crus ou cozidos, e argamassas.

Tipo da caverna

Cabanas primitivas segundo William Chambers
Figura 1: Cabanas primitivas segundo William Chambers

Na tipologia desenvolvida por William Chambers (fig. 2) na segunda metade do século XVIII,Chambers, A Treatise on Civil Architecture.

a tenda é o tipo originário das construções temporárias (fig. 1). No domínio da arquitetura durável, o mito da cabana primitiva foi o nosso ponto de partida para explicar a construção arquitravada em madeira.

A construção murária, portanto, remete ao terceiro e último tipo originário: a caverna. Ao contrário dos dois primeiros tipos, a alegoria de uma caverna não faz uma analogia muito clara com processos propriamente construtivos; em vez disso, ela representa uma certa ideia de espacialidade. Os espaços da caverna são volumes com formas claramente definidas por uma massa de construção que parece ter sido escavada por dentro.


Sir William Chambers (1723–1796), retrato pintado por Joshua Reynolds
Figura 2: Sir William Chambers (1723–1796), retrato pintado por Joshua Reynolds
Antoine Chrysosthome Quatremère de Quincy (1755–1849), retrato oficial do Instituto de Belas-Artes, 1820
Figura 3: Antoine Chrysosthome Quatremère de Quincy (1755–1849), retrato oficial do Instituto de Belas-Artes, 1820

O teórico francês Quatremère de Quincy (fig. 3), no final do século XVIII, elaborou o caráter da “caverna”Quatremère de Quincy, “Caractère”.

com base num dos três tipos de abrigos primitivos propostos em 1759 por Chambers.


Segundo Quatremère, a caverna seria o abrigo primitivo das sociedades pastorais (fig. 4): um abrigo caracterizado pelas suas necessidades de espaço, ao contrário da cabana, que era determinada pelo desenvolvimento de uma certa lógica construtiva. Com esse argumento, Quatremère pretendia relegar a caverna à cultura de sociedades muito antigas, como o Egito e a Mesopotâmia. Aqui, vamos subverter essa hierarquia e tratar a caverna como o tipo de todas as culturas construtivas que se baseiam em massas de alvenaria portante.

Thomas Cole, Decurso do império: o estado arcádio ou pastoral, 1836
Figura 4: Thomas Cole, Decurso do império: o estado arcádio ou pastoral, 1836

Cabana dos índios karib em Trinidad e Tobago, apresentada na exposição universal de Londres em 1851 e publicada por Semper em 1860
Figura 5: Cabana dos índios karib em Trinidad e Tobago, apresentada na exposição universal de Londres em 1851 e publicada por Semper em 1860

A origem da parede portante tem sido tratada como algo derivativo, secundário na lógica da arquitetura. O teórico alemão do século XIX Gottfried Semper especulou que a parede não nascia com a solidez duma alvenaria estrutural, e sim com a leveza de uma esteira trançada. Esse pressuposto vem do modelo de cabana primitiva proposto por Semper em 1860, que deriva de uma habitação contemporânea dos índios karib (fig. 5).


Semper escreveu isso numa época em que estava se tornando comum construir com esqueletos estruturais em ferro (fig. 6), deixando as paredes com um papel de simples vedação, sem função estrutural. Por isso, essa separação entre esqueleto portante e parede divisória parecia natural para ele, talvez até primordial. Mas essa distinção é mais uma regressão conceitual do que algo efetivamente atestado na história da arquitetura.

Henri Labrouste, arquiteto, biblioteca Sainte-Geneviève, sala de leitura, Paris, 1842. Foto: Marie-Lan Nguyen, 2011
Figura 6: Henri Labrouste, arquiteto, biblioteca Sainte-Geneviève, sala de leitura, Paris, 1842. Foto: Marie-Lan Nguyen, 2011

Como quer que seja, a alvenaria é o segundo princípio construtivo ancestral: ela sempre aparece associada às construções arquitravadas, seja como fundação, seja como contraventamento. A alvenaria nasce, com perdão da licença poética, do gesto primário de quem empilha uns seixos na beira do caminho para marcar a sua passagem.


Abrigos contra o vento no sítio arqueológico de Orangia I, África do Sul, Paleolítico médio, c. 130.000 a.p. Desenho: Andrew Ferentinos, baseado em Clavin Garth Sampson, 1968, publicado em Jarzombek, Architecture of First Societies
Figura 7: Abrigos contra o vento no sítio arqueológico de Orangia I, África do Sul, Paleolítico médio, c. 130.000 a.p. Desenho: Andrew Ferentinos, baseado em Clavin Garth Sampson, 1968, publicado em Jarzombek, Architecture of First Societies

A construção com pedra está presente como arrimo em alguns dos mais antigos abrigos de caçadores-coletores: no sítio arqueológico de Orangia I, um dos mais antigos registros da nossa espécie com cerca de 130 mil anos de idade,Jarzombek, Architecture of First Societies.

havia um acampamento formado por um conjunto de anteparos contra o vento construídos com pedra seca, ou seja, pedras empilhadas sem argamassa (fig. 7).

Compressão pura

O princípio estrutural da construção murária é a compressão pura. As paredes tradicionais em alvenaria de blocos ou em taipa só exercem a força do próprio peso O atrito entre os componentes da alvenaria ou taipa oferece um pouco de resistência contra o cisalhamento e um mínimo de resistência a pequenos esforços de tração lateral, como a força do vento.


Como a resistência da alvenaria sempre se dá à compressão, a sua estabilidade aumenta à medida que vamos “descendo” do topo da parede até o solo. Isso acontece porque quanto mais massa de parede temos acima de um ponto qualquer, mais o vetor de força vertical — o peso próprio da estrutura — predomina sobre qualquer esforço lateral. Por outro lado, a principal preocupação nas paredes de blocos é a flambagem da estrutura (fig. 8). Isso quer dizer que uma parede esbelta pode ser deformada para os lados mesmo por uma carga vertical. Esse problema é especialmente importante quando a parede é construída com blocos pequenos — em geral, adobe ou tijolo cozido.

Resistência de paredes em alvenaria: (A) compressão axial por cargas permanentes e acidentais; (B) carga lateral acidental; (C) resistência lateral por atrito; (A′) vetor de carga excêntrica causando flambagem
Figura 8: Resistência de paredes em alvenaria: (A) compressão axial por cargas permanentes e acidentais; (B) carga lateral acidental; (C) resistência lateral por atrito; (A′) vetor de carga excêntrica causando flambagem

Flambagem e contraventamento

Seção ideal e prática de parede, segundo Julien Guadet, Éléments et théorie de l’architecture
Figura 9: Seção ideal e prática de parede, segundo Julien Guadet, Éléments et théorie de l’architecture

Mas, mesmo uma parede relativamente grossa está sujeita à flambagem se for muito longa ou alta. Por isso, a parede precisa ser contraventada. Vários expedientes são usados para isso na construção murária. O mais simples é dar à parede uma seção mais larga na base do que no topo. A seção ideal desse perfil é uma curva hiperbólica,Guadet, Éléments et théorie de l’architecture.

mas na prática a solução é fazer as paredes verticais de cada pavimento um pouco mais largas do que as paredes do pavimento superior (fig. 9). Portanto, esse perfil de paredes mais espessas no térreo e mais esbeltas nos níveis superiores não tem tanto a ver com a capacidade de resistência à carga vertical no sentido estrito, ou seja, ao esmagamento dos blocos. O que ela faz é evitar a deformação horizontal da parede causada pela flambagem.


Chafurdão no vale de Cales, Castelo de Vide, Alentejo, Portugal. ADER–AL, 2014
Figura 10: Chafurdão no vale de Cales, Castelo de Vide, Alentejo, Portugal. ADER–AL, 2014

A solução mais direta para o contraventamento das paredes é erguer uma construção circular, como os tradicionais chafurdões da península Ibérica (fig. 10). A forma circular oferece uma estabilização contínua em todos os pontos da estrutura.


Muro serpenteante, Shaw nature reserve. Foto: Steve Bougeno, 2015
Figura 11: Muro serpenteante, Shaw nature reserve. Foto: Steve Bougeno, 2015

Apesar de a construção circular ser o ápice da pureza formal e da estabilidade estrutural, na maioria dos casos precisamos construir paredes que seguem um percurso linear. Um modo engenhoso de fazer isso são as muretas serpenteantes muito usadas em divisas de jardins ou pequenas propriedades rurais (fig. 11). Esse deslocamento aumenta o momento de inércia da parede como um todo, o que evita a flambagem e resiste também a cargas horizontais, como a do vento.


O muro serpenteante é usado desde o Egito antigo por ser um modo econômico de estabilizar paredes finas construídas em adobe.Siegel, “The Development and Function of Serpentine/Sinusoidal Walls”.

Ele é atestado tanto na infraestrutura pública, como nas muralhas da cidade de Buhen (fig. 12), quanto nas paredes de casas, como na recém-escavada “cidade dourada” de Luxor. fig. 13

Planta e corte das muralhas de Buhen do Médio até o Novo Império. Siegel, “Development and function of serpentine and sinusoidal walls”
Figura 12: Planta e corte das muralhas de Buhen do Médio até o Novo Império. Siegel, “Development and function of serpentine and sinusoidal walls”

Vista das escavações da “cidade dourada” ou “encanto de Aten”, próxima a Luxor, datada do reinado de Amenhotep III (1388–1351 a.C.). Foto: Khaled Desouki/AFP, 2021
Figura 13: Vista das escavações da “cidade dourada” ou “encanto de Aten”, próxima a Luxor, datada do reinado de Amenhotep III (1388–1351 a.C.). Foto: Khaled Desouki/AFP, 2021

Recinto murado do complexo mortuário do faraó Djoser em Saqqara, Egito, c. 2670–2650 a.C., em alvenaria de pedra com ressaltos. Foto: Maveric149, 2008
Figura 14: Recinto murado do complexo mortuário do faraó Djoser em Saqqara, Egito, c. 2670–2650 a.C., em alvenaria de pedra com ressaltos. Foto: Maveric149, 2008

Apesar disso, numa edificação, fazer uma parede serpenteante não é muito prático. Em vez disso, o mais comum é usar ressaltos ortogonais. Esses ressaltos podem ser maciços, e nesse caso podem se tornar volumes em forma de torres, como na muralha do complexo da pirâmide do faraó Djoser (fig. 14). Eles podem, também, ser vazados para dentro, e nesse caso oferecem vãos nas paredes para encaixar mobiliário. Por fim, a largura dos ressaltos permite enquadrar portas e janelas com mais firmeza visual, além de oferecer espaço para assentos junto às janelas.

Contrafortes

Esquema em planta de parede com contrafortes (A), segundo Julien Guadet
Figura 15: Esquema em planta de parede com contrafortes (A), segundo Julien Guadet

Uma alternativa mais ligeira a esses ressaltos grandes é o uso de contrafortes (fig. 15). Os contrafortes são, para efeito do carregamento da estrutura, pequenos tramos de parede perpendiculares à parede principal. Eles criam pontos de maior resistência às forças não axiais e garantem a estabilidade do conjunto (fig. 8).


Paredes em tijolo, pedra ou mesmo taipa podem ser reforçadas com contrafortes, que eventualmente assumem a forma de pilastras ou colunas “decorativas” na fachada. fig. 16

Colunas embutidas formando contrafores no interior da cela do templo de Baco, Baalbek, século II d.C. Foto: Félix Bonfils
Figura 16: Colunas embutidas formando contrafores no interior da cela do templo de Baco, Baalbek, século II d.C. Foto: Félix Bonfils

Alinhamento vertical

correto: a estrutura de cima não ultrapassa o alinhamento de baixo errado: a base da estrutura de cima está em balanço sobre o alinhamento de baixo

Figura 17: Alinhamentos estruturais em alvenaria, segundo Julien Guadet

Para finalizar, é sempre importante lembrar que uma parede de alvenaria só funciona à compressão pura. Isso quer dizer que o seu alinhamento estrutural precisa sempre ser mais largo em baixo e mais estreito em cima, nunca em balanço — isto é, o elemento de cima projetando-se para fora do de baixo (fig. 17).

Conclusão

Assim, a necessidade material de estabilizar as paredes acaba resultando em oportunidades para fazer articulações expressivas e decorativas. Diante da necessidade de sair do plano da parede e abraçar a terceira dimensão, ou seja, o volume do espaço, a construção murária alcança a maior capacidade de expressar a espacialidade, dentre todos os recursos da arquitetura tradicional.

Arquitetura subtrativa

A construção murária, ou seja, baseada em paredes, é a delimitação por excelência do espaço. No tópico anterior, vimos como a construção arquitravada vem do uso da madeira, e resulta em malhas estruturais com composição aditiva. A construção murária, por sua vez, tem o seu paradigma material nas alvenarias, e corresponde a uma concepção subtrativa: como se o espaço pudesse ser escavado dentro de uma massa estrutural sólida.

Na taxonomia da arquitetura tradicional, associamos a construção murária com o caráter da caverna, enquanto a construção arquitravada tem o caráter da cabana. Essa oposição sinaliza duas relações diferentes entre construção e espaço. A cabana é um paradigma aditivo: a montagem de peças formando um esqueleto estrutural que organiza o espaço indefinido numa malha. Já a caverna é um paradigma subtrativo: os espaços de formas definidas são como que escavados entre as massas de paredes.

A arquitetura aditiva pede um estudo rigoroso da articulação de malhas estruturais e do seu impacto na modularidade dos espaços. A arquitetura subtrativa, por sua vez, pede atenção para a forma geométrica de cada espaço e para a sequência de espaços individuais num conjunto.

Pensar o espaço de modo subtrativo, escavando volumes dentro de uma massa construída, na verdade abre um universo mais amplo de possibilidades de manipulação da forma. Os espaços pode estar simplesmente justapostos numa sequência, ou podem se interpenetrar, formando articulações mais complexas de volumes. As formas geométricas em três dimensões podem se alinhar horizontalmente, ao longo do percurso dos usuários, mas também verticalmente, compondo ambientes visualmente ricos e amplos.

Habitações adossadas à rocha

É nas regiões pouco arborizadas que a construção murária assume, pela primeira vez, o papel estrutural dominante. Muitas dessas regiões, de clima semiárido, ficam na zona tropical e subtropical do hemisfério Norte. Alguns dos exemplares mais antigos dessa arquitetura se localizam na América do Norte e no Oriente Médio. Esses exemplares justificam o termo de “caverna” que usamos para caracterizar o tipo básico da construção murária: as paredes em pedra seca e as encostas rochosas aparentemente começam a ser usadas como arrimo ou acabamento para espaços semienterrados (fig. 18).

Vestígios arqueológicos da povoação dita Cliff Palace, c. 1100–1300 d.C. Parque nacional Mesa Verde, Colorado, Estados Unidos. Foto: M.P. Sharwood, 2011
Figura 18: Vestígios arqueológicos da povoação dita Cliff Palace, c. 1100–1300 d.C. Parque nacional Mesa Verde, Colorado, Estados Unidos. Foto: M.P. Sharwood, 2011

Vista panorâmica parcial do sítio arqueológico de Göbekli Tepe, Şanlıurfa, Turquia. Foto: Rolf Cosar, 2010
Figura 19: Vista panorâmica parcial do sítio arqueológico de Göbekli Tepe, Şanlıurfa, Turquia. Foto: Rolf Cosar, 2010

Depois da cabana de Eynan, o sítio mais antigo que se conhece com construção murária é Göbekli Tepe (fig. 19), um morro no extremo norte do Crescente fértil que começou a ser ocupado por volta de 9500 a.C. Aqui também temos arrimos em pedra seca em volta de pelo menos quatro espaços semienterrados de planta mais ou menos circular (fig. 20). Ao contrário de Eynan, em Göbekli Tepe os pilares, que talvez sustentassem alguma cobertura, são grandes lajes de pedra.


Göbekli Tepe, vista aérea das escavações. Foto: E. Kücuk, Instituto Arqueológico Alemão (DAI), 2019
Figura 20: Göbekli Tepe, vista aérea das escavações. Foto: E. Kücuk, Instituto Arqueológico Alemão (DAI), 2019

Ao contrário do abrigo em Eynan e de quase todas as outras construções da mesma época, as estruturas de Göbekli Tepe eram (quase?) inteiramente feitas de pedra, e não parecem ter sido usadas como abrigo ou habitação. Isso nos leva a uma questão que, daí para a frente, seria central na arquitetura de muitas tradições por todo o mundo: o uso de materiais duráveis preferencialmente dedicado para construções não estritamente utilitárias, como edifícios religiosos ou simbólicos do poder político.

As construções semienterradas com planta centralizada são a epítome da arquitetura subtrativa, que parece escavada numa massa sólida (ver fig. 19). Na pré-história e na Antiguidade, são essas construções que definem com maior clareza os seus espaços interiores. Elas necessariamente são construídas com alguma combinação de escavação, aterro e muros de arrimo em pedra. Esses arrimos vão desde pedra lavrada, blocos simplesmente recolhidos e empilhados, até grandes lajes megalíticas.


O conceito de uma arquitetura feita de espaços como que escavados na matéria sólida não é só uma alegoria: as mais antigas construções duráveis que se conhece eram semienterradas ou tinham pelo menos uma parte do seu espaço escavado contra o terreno inclinado (fig. 21). Os monumentos de Göbekli Tepe, no extremo norte do Crescente fértil, foram construídos desse modo entre 9600 e 8500 a.C. (fig. 19). Não está claro se esses espaços eram originalmente cobertos; se fosse o caso, a semelhança com cavernas seria ainda mais marcante.

Construção dos recintos de Göbekli Tepe, c. 9600 a.C. Desenho: Fernando Baptista, 2016
Figura 21: Construção dos recintos de Göbekli Tepe, c. 9600 a.C. Desenho: Fernando Baptista, 2016

Antas e túmulos

Vista aérea dos templos megalíticos de Ħal Tarxien, Malta, 3250–3000 a.C.
Figura 22: Vista aérea dos templos megalíticos de Ħal Tarxien, Malta, 3250–3000 a.C.

Vista do templo central de Ħal Tarxien, ao longo do eixo que vai do portal principal ao altar, c. 3100 a.C. Foto: Ethan Doyle White, 2017
Figura 23: Vista do templo central de Ħal Tarxien, ao longo do eixo que vai do portal principal ao altar, c. 3100 a.C. Foto: Ethan Doyle White, 2017

A partir daí, o tipo da construção semienterrada se espalha pelo corredor eurasiático durante o período Neolítico. A arquitetura megalítica na Europa se reporta a essa configuração, como no conjunto de templos construídos antes de 3000 a.C. em Malta (fig. 22). Esses templos eram formados por sequências de espaços semicirculares cada vez mais restritos, dando um senso de reclusão crescente até que se alcançava um altar no fundo da construção (fig. 23).


As construções semienterradas se aclimatam até as extremidades úmidas da Eurásia, onde elas são usadas tanto como sepulturas quanto como habitações — às vezes ao mesmo tempo. As construções monumentais muitas vezes são delimitadas com imensas lajes de pedra em todos os lados: os dolmens ou antas (fig. 24). Essas estruturas teriam sido cobertas com um terrapleno por todos os lados, formando um túmulo, e poderiam ser usadas para vários propósitos rituais: desde sacrifícios religiosos até sepultamentos humanos.

Anta da orca de Pendilhe, Portugal, final do IV milênio a.C. Foto: João Carvalho, 2005
Figura 24: Anta da orca de Pendilhe, Portugal, final do IV milênio a.C. Foto: João Carvalho, 2005

Figura 25: Modelo tridimensional do túmulo de Maeshowe, ilhas Órcades, Escócia, c. 2800 a.C. Historic Environment Scotland, 2012.

Nas ilhas Órcades, o túmulo neolítico de Maeshowe, de c. 2800 a.C. (fig. 25), tem uma câmara central quadrada, com 4 metros de lado, debaixo de um terrapleno artificial.


Um corredor com 11 metros de comprimento mas menos de um metro de pé-direito dá acesso à câmara, de onde se abrem três células secundárias (fig. 27). Como em Malta, o espaço mais importante é a célula que fica diante do eixo do corredor (fig. 26), pelo qual a luz do sol entra no dia do solstício de inverno.

Cortes do túmulo de Maeshowe. Fantoman400, 2006
Figura 26: Cortes do túmulo de Maeshowe. Fantoman400, 2006

Planta do túmulo de Maeshowe, ilhas Órcades, Escócia, c. 2800 a.C. Desenho: F.W.I. Thomas, após 1861
Figura 27: Planta do túmulo de Maeshowe, ilhas Órcades, Escócia, c. 2800 a.C. Desenho: F.W.I. Thomas, após 1861

Isolamento térmico

A espacialidade da arquitetura subtrativa e, particularmente, o tipo da câmara com células anexas, é um paradigma que pode ser adaptado a uma gama muito variada de necessidades arquitetônicas, da habitação a grandes edifícios públicos. As habitações que seguem esse tipo se adaptam bem a vários climas que não pedem ventilação cruzada, tanto no frio quanto no calor.

Clima frio

No norte da Europa, a tipologia da caverna funciona bem para proteger contra o frio e o vento. A aldeia neolítica de Skara Brae, também nas ilhas Órcades, é contemporânea do túmulo de Maeshowe. Assim como esse túmulo, as casas de Skara Brae são formadas por uma câmara central com células anexas. A sua estrutura é construída com paredes muito espessas de pedra lavrada (fig. 28).

Planta da aldeia neolítica de Skara Brae, ilhas Órcades, Escócia, 3100–2800 a.C. Desenho adaptado de V. Gordon Childe, 1930
Figura 28: Planta da aldeia neolítica de Skara Brae, ilhas Órcades, Escócia, 3100–2800 a.C. Desenho adaptado de V. Gordon Childe, 1930

Figura 29: Modelo tridimensional da casa 7 em Skara Brae, 3100–2800 a.C. Historic Environment Scotland, 2021.

As casas ainda são adossadas umas às outras para reduzir ao mínimo a exposição das paredes ao exterior (fig. 29). Isso evita a perda de calor e a infiltração de água da chuva na estrutura. Um lar escavado no centro da câmara principal de cada casa mantinha o ambiente aquecido e ajudava a reduzir a sensação de umidade. Para melhorar o isolamento térmico, as pedras são assentadas com troços de terra com a grama ainda enraizada.


Reconstituição da aldeia de Skara Brae vista desde o pátio de acesso ao corredor
Figura 30: Reconstituição da aldeia de Skara Brae vista desde o pátio de acesso ao corredor

Todas as casas se articulam em volta de um corredor central, e o conjunto é coberto por um terrapleno apoiado em vigas de madeira {fig. 30).


Outra semelhança com o túmulo de Maeshowe é que alguns corpos foram sepultados dentro das próprias casas, debaixo das plataformas que serviam de bancos e camas (fig. 31).

Câmara de uma casa em Skara Brae, com lar central e três plataformas contra as paredes, célula satélite ao fundo. Foto: Archaeology Scotland, 2013
Figura 31: Câmara de uma casa em Skara Brae, com lar central e três plataformas contra as paredes, célula satélite ao fundo. Foto: Archaeology Scotland, 2013

Reconstituição da câmara de uma casa em Skara Brae com a sua cobertura. Foto: Orkneyology
Figura 32: Reconstituição da câmara de uma casa em Skara Brae com a sua cobertura. Foto: Orkneyology

O interior das casas era bastante escuro já que não havia janelas, só a abertura da chaminé no teto. Essa configuração deixa claro que as prioridades da arquitetura de Skara Brae eram o isolamento térmico e a proteção contra o vento (fig. 32).

Clima árido

Câmara semienterrada na extremidade de um mustatil. Fotos: Agência de Arqueologia do Reino da Arábia Saudita
Figura 33: Câmara semienterrada na extremidade de um mustatil. Fotos: Agência de Arqueologia do Reino da Arábia Saudita

Na bacia do Mediterrâneo, a câmara com células ou as sequências de células resultam em composições que respondem bem ao clima ameno, um pouco seco e muito ensolarado da região. Os abrigos sazonais semienterrados dos caçadores-coletores (fig. 33) atestados no Levante desde 12800 a.C.Bar-Yosef e Belfer-Cohen, “The Origins of Sedentism and Farming Communities in the Levant”.

logo deram origem a assentamentos densos formados por células com estrutura em adobe.Rosenberg et al., “7,200 Years Old Constructions and Mudbrick Technology”.

O sítio representativo dessa composição de habitações por células construídas em adobe é a aldeia neolítica de Çatal Höyük, no sul da Anatólia, datada de 7100 a.C. Çatal Höyük foi ocupada sazonalmente por uma comunidade agropastoril e tinha um tecido construído muito compacto, com poucos pátios internos e nenhuma rua. figs. 34, 35

Figura 34: Reconstituição do tecido construído de Çatal Höyük, Anatólia, 7100–5700 a.C. ZDF, 2020

Planta da aldeia neolítica de Çatal Höyük. Contorno pontilhado: pátios externos
Figura 35: Planta da aldeia neolítica de Çatal Höyük. Contorno pontilhado: pátios externos

Diagrama dos sistemas construtivos de uma célula em Çatal Höyük
Figura 36: Diagrama dos sistemas construtivos de uma célula em Çatal Höyük

As células eram construídas com uma estrutura portante mista de madeira e grandes blocos de adobe (fig. 36). O espaço interior era organizado de modo semelhante ao das casas em Skara Brae, com uma área central cercada por plataformas.


A solução espacial da câmara com células acopladas reaparece nas necrópoles etruscas, na Itália do século VI a.C. em diante. A chamada tumba dos relevos na necrópole de Banditaccia, na antiga cidade etrusca de Cisra, é um dos exemplares mais característicos desse tipo (fig. 37). Ela é literalmente escavada na rocha, como a maioria das tumbas da nobreza etrusca, e tem um espaço central de onde irradiam as células para os sarcófagos.

Interior da tumba dos relevos, necrópole etrusca de Banditaccia, Cisra (atual Cerveteri), Itália, c. 400 a.C. Foto: Roberto Ferrari, 2009
Figura 37: Interior da tumba dos relevos, necrópole etrusca de Banditaccia, Cisra (atual Cerveteri), Itália, c. 400 a.C. Foto: Roberto Ferrari, 2009

Casa com átrio romana
Figura 38: Casa com átrio romana

As tumbas etruscas são provavelmente uma representação da edilícia de base urbana da Itália central, como na colônia etrusca escavada na atual cidade italiana de Marzabotto (fig. 39). O tipo de base dessa arquitetura é a casa com corredor de entrada e átrioBoëthius, Etruscan and Early Roman Architecture; ver também Gailledrat e Vacheret, “Lattes/Lattara (Hérault), comptoir étrusque du littoral languedocien”.

— o espaço central da casa, que pode ser um salão coberto ou um pátio descoberto (fig. 38). A própria palavra átrio é uma de várias palavras arquitetônicas que se originam na língua etrusca, de onde elas passaram para o latim e daí para as línguas românicas modernas.

Casas na insula V3 de Marzabotto, século IV a.C. Gailledrat e Vacheret, 2020
Figura 39: Casas na insula V3 de Marzabotto, século IV a.C. Gailledrat e Vacheret, 2020

Conclusão

Corte esquemático de uma câmara típica de Çatal Höyük e de Skara Brae
Figura 40: Corte esquemático de uma câmara típica de Çatal Höyük e de Skara Brae

As estratégias construtivas para acumular calor em climas frios são semelhantes àquelas usadas para impedir o ganho térmico em climas quentes e secos. Essa convergência bioclimática, associada à continuidade cultural entre o Oriente Médio e a Europa no Neolítico, explicam a semelhança de configuração nos sítios de Çatal Höyük e Skara Brae (fig. 40).

Materiais naturais e cozidos

O ciclo de produção dos materiais da construção murária é geralmente mais curto que o da madeira. O aspecto crítico é a extração da matéria-prima, e isso vale tanto para a pedra quanto para os blocos feitos de barro seco ou cozido.

Já no século XV, Leon Battista Alberti, o arquiteto e tratadista italiano, podia comprar quase todos os componentes construtivos de que ele precisasse, prontos para uso.Alberti, Da arte edificatória, II, xiii.

No entanto, isso não o impediu de descrever, em linhas gerais, as características da matéria-prima ou o seu preparo. Esse gênero de informação, como se fosse um controle de qualidade ou de procedência, aparece desde o tratado de Vitrúvio e em textos do Renascimento inspirados por ele, como nos Quatro livros da arquitetura de Palladio.Palladio, I quattro libri dell’architettura, I.

Mesmo assim, o impacto ambiental da extração dessa matéria-prima mineral é um aspecto cada vez mais importante à medida que o volume de construção aumenta em todo o mundo. Nos processos industriais, a extração de matérias-primas deixa para trás uma pegada ambiental caracterizada pelo desperdício de recursos e pela destruição e contaminação de espaços muito vastos (fig. 41).

Figura 41: Caminhão e maquinário numa pedreira. Mixkit

Campanário da catedral de Trieste, 1302–1320, incorporando fragmentos do friso dos propileus da cidade romana, século I d.C. Foto: Matthias Kabel, 2009
Figura 42: Campanário da catedral de Trieste, 1302–1320, incorporando fragmentos do friso dos propileus da cidade romana, século I d.C. Foto: Matthias Kabel, 2009

Ao contrário, nos processo artesanais, esse impacto é moderado pelo esforço econômico necessário para a extração de rochas e argila: por isso, a regra era a reutilização de elementos de construções antigas, quando não a reutilização e preservação das edificações como um todo. fig. 42

Pedra

Na maior parte do mundo, as rochas usadas para a construção são sedimentares, porque elas combinam facilidade de extração e resistência mecânica suficiente para os propósitos da construção. Essas rochas se dividem, para efeitos práticos, em dois grandes grupos: os calcários e os arenitos.

O calcário é o grupo de rochas em geral mais útil para a construção, e por isso tem sido usado desde o Neolítico, como nos monumentos megalíticos de Malta, construídos por volta de 3000 a.C. (fig. 43). Além de ser usado em blocos, o calcário também pode ser britado e queimado para produzir cal, que é um insumo importante em argamassas e também é a matéria-prima do gesso. O calcário geralmente se deposita em leitos ou veios sucessivos, e por isso tem um grão linear que precisa ser levado em conta no uso estrutural dos blocos.

Monumento megalítico de Ħaġar Qim, Malta, 3200 a 2500 a.C., construído em calcário. Foto: Kiss Tamás, 1999
Figura 43: Monumento megalítico de Ħaġar Qim, Malta, 3200 a 2500 a.C., construído em calcário. Foto: Kiss Tamás, 1999

Terra

A matéria-prima mais difundida na construção murária do mundo todo é a terra. Nas formas mais rústicas de construção popular, a terra naturalmente presente no local da obra pode ser usada. Mas, em qualquer aplicação um pouco mais refinada tecnicamente — mesmo na maior parte da construção vernácula —, o padrão de qualidade é mais exigente que isso.


Tanto a argila quanto a areia usadas na confecção dos blocos e tijolos devem estar livres de matéria orgânica. Eventualmente, blocos de adobe podem ser “aditivados” com fibras ou proteínas orgânicas, mas isso deve ser feito de modo controlado. Por isso, os materiais mais indicados pelos tratadistas e construtores são a argila e a areia ditas “de mina”, ou seja, extraídas de encostas ou poços, como neste barranco no Malaui (fig. 44), e não recolhidas na superfície, da margem de rios ou do mar.

Extração de argila para olaria em Mlala, Dwangwa, Malaui. Foto: Bibiloucapetown, 2017
Figura 44: Extração de argila para olaria em Mlala, Dwangwa, Malaui. Foto: Bibiloucapetown, 2017

Figura 45: Produção de tijolos numa olaria em Qom, Irã. Oxlaey, 2015

Em todos os casos, a obtenção e a correção da matéria-prima, seguida da moldagem e secagem dos blocos, pode levar algumas semanas. Em regiões de clima úmido, onde se usam sobretudo tijolos cozidos, é preciso deixar secar os blocos moldados durante muito mais tempo, talvez até alguns meses, antes de os queimar. A queima propriamente dita dura cerca de sete dias, a baixa temperatura (fig. 45).

Em qualquer caso, a relativa facilidade de se produzir os blocos de adobe ou os tijolos, e as suas pequenas dimensões, fazem com que esses componentes possam ser altamente padronizados e estocados em grandes quantidades para pronta entrega. Ainda assim, a produção de blocos em formas personalizadas, numa olaria artesanal, também é simples, o que permite resolver elementos especiais como colunas e cimalhas.

Os tijolos têm a vantagem de serem muito regulares e padronizados, o que faz com que as medidas da construção sejam tiradas com facilidade. O tijolo tem uma boa relação entre o seu peso próprio e a capacidade portante, e pode ser usado para formar paredes muito espessas com facilidade. O segredo, como sempre, está em desencontrar as juntas verticais (ver fig. 51).

Argamassas

O assentamento dos blocos com argamassa é a regra em quase todas as tradições da construção murária. Em muitos casos, o material de que é feita a argamassa é o mesmo material dos blocos: barro, para assentar blocos em adobe, ou cal e areia, para assentar blocos de pedra.


Em sociedades que fazem uso generalizado de tijolos cozidos, a argamassa de cal também costuma ser usada na argamassa, já que o procedimento de produção dos dois elementos envolve tecnologias semelhantes: a queima com redução de oxigênio, como neste forno de cal do século XVIIIQuintana Frías, “Una de cal y otra de historia”.

(fig. 46).

Forno de cal de Montesa, Valência, Espanha, século XVIII. Modelagem: Pablo Aparicio Reso, 2013
Figura 46: Forno de cal de Montesa, Valência, Espanha, século XVIII. Modelagem: Pablo Aparicio Reso, 2013

Parede em blocos de tufo na necrópole etrusca de Banditaccia, Itália, c. século VI a.C. Foto: Patafisik, 2009
Figura 47: Parede em blocos de tufo na necrópole etrusca de Banditaccia, Itália, c. século VI a.C. Foto: Patafisik, 2009

Pelo mesmo motivo, regiões com muitos depósitos de rochas vulcânicas, como o tufo na Itália (fig. 47), também agregam certas cinzas vulcânicas à argamassa. Essas cinzas são conhecidas como pozolanas por causa da cidade de Pozzuoli, onde elas são especialmente abundantes. Tanto a cal quanto as pozolanas dão propriedades hidráulicas à argamassa, isto é, esses materiais reagem quimicamente com a água da mistura.

As argamassas resultantes dessas reações têm propriedades interessantes para a construção: além de aumentarem a resistência do sistema, a argamassa de cal preserva alguma flexibilidade que ajuda a acomodar o assentamento da estrutura; a reação de pozolana com cal dá ainda mais resistência, coesão quando os blocos também são feitos de tufo ou basalto, durabilidade para a parede, e mesmo alguma impermeabilização.

Por isso, a pozolana é bastante usada mesmo na construção moderna, como aditivo ao cimento.


O sistema construtivo mais difundido na Roma antiga, que muito chamam de “concreto romano”, na verdade é uma alvenaria de pequenos blocos de rocha vulcânica assentados com um volume grande de argamassa pozolânica. Os vestígios de alvenaria no parque da via Appia Antica, em Roma, mostram a resistência e durabilidade da argamassa pozolânica dos antigos romanos, que forma uma parede quase monolítica e consegue se sustentar até em balanço (fig. 48).

Vestígios de alvenaria romana na villa dei Sette Bassi, sudeste de Roma, 134–160 d.C. Foto do projeto de Ana Cristina Azevedo, Eduardo Sinegaglia, Gianluca Vassalo Paleologo, Ivy Stefanie Ramos Baclig, Juliana Lisboa, Marina Amaral e Riccardo Vassalo Paleologo, Università degli studi di Roma Tre, 2014–2015
Figura 48: Vestígios de alvenaria romana na villa dei Sette Bassi, sudeste de Roma, 134–160 d.C. Foto do projeto de Ana Cristina Azevedo, Eduardo Sinegaglia, Gianluca Vassalo Paleologo, Ivy Stefanie Ramos Baclig, Juliana Lisboa, Marina Amaral e Riccardo Vassalo Paleologo, Università degli studi di Roma Tre, 2014–2015

Figura 49: Aplicação de tadelakt na Espanha. Filmagem: Frecuencia Tierra, 2020.

O mesmo material usado para o assentamento dos blocos também pode ser usado no revestimento de paredes e mesmo de pisos. O tadelakt (fig. 49), uma mistura polida de barro com gesso (obtido a partir da cal), é um revestimento muito usado na bacia do Mediterrâneo e vizinhanças, tanto em paredes quanto em pisos. Ele dá um acabamento muito liso e com alguma resistência à umidade.

Conclusão

O discurso sobre a origem dos materiais tende a desaparecer dos textos arquitetônicos a partir do século XVII. O fim da preocupação com a profundidade inteira da cadeia produtiva da construção acompanha uma tripla separação de competências no ofício: num vértice temos os arquitetos, que se especializam na solução espacial e estética das edificações; num segundo vértice, estão os engenheiros calculistas que concebem o equilíbrio estático dessas edificações a partir de materiais com propriedades já conhecidas; e, no terceiro vértice, temos os construtores que se ocupam de comprar e instalar os componentes padronizados. Nenhuma dessas três categorias profissionais tem mais o domínio da cadeia produtiva como um todo, nem sequer a necessidade ou as atribuições para se ocupar de trechos dessa cadeia que estejam fora da sua alçada.

Aparelhos de alvenaria

Com exceção das taipas e tabiques, todas as paredes tradicionais são construídas com blocos. A forma e o modo de apoiar esses blocos é o que chamamos de aparelho.


O objetivo de todo aparelho de alvenaria é dar a maior resistência possível para o conjunto, tendo em vista os materiais e técnicas disponíveis para formar os blocos. Por isso, a primeira regra em todo aparelho é fazer juntas verticais desencontradas (figs. 50, 51).

Aparelhos com (A) juntas verticais alinhadas (errado) e (B) desencontradas (correto), segundo Julien Guadet
Figura 50: Aparelhos com (A) juntas verticais alinhadas (errado) e (B) desencontradas (correto), segundo Julien Guadet

Amarrações de tijolos, segundo Julien Guadet
Figura 51: Amarrações de tijolos, segundo Julien Guadet

Pedra seca e lavrada

A forma mais simples de aparelho é a pedra seca. Nesse aparelho, as pedras são recolhidas na superfície do solo e, em geral, usadas no estado em que foram encontradas. A pedra seca é usada sobretudo para construir muretas para cercar pastos (fig. 52).

Restauro de um muro em pedra seca, Reculfoz, França, 2014
Figura 52: Restauro de um muro em pedra seca, Reculfoz, França, 2014

Muro em pedra seca com perpianhos, c. 1780–1820. Christian Lassure e Catherine Ropert, 1984
Figura 53: Muro em pedra seca com perpianhos, c. 1780–1820. Christian Lassure e Catherine Ropert, 1984

Para dar maior estabilidade a essas simples pilhas de pedra, a melhor prática é assentar algumas pedras mais longas atravessando toda a espessura do muro (fig. 53). Essas pedras longas são chamadas de perpianhos.

Com um pouco mais de esforço se faz uma parede em pedra lavrada. Aqui, as pedras são parcialmente regularizadas para se encaixarem. Elas costumam ser assentadas com uma argamassa simples, que pode ser simplesmente barro, uma mistura de barro com cal, ou ainda uma argamassa de cal e areia (fig. 54).

Figura 54: Muro em pedra lavrada

Pedra aparelhada

As pedras lavradas são aquelas que foram simplesmente extraídas da rocha matriz ou mesmo encontradas soltas; elas são encaixadas umas nas outras geralmente usando-se bastante argamassa. Já os blocos de pedra aparelhada recebem um acabamento liso nas superfícies de assentamento, onde eles se encaixam diretamente em outros blocos ou assentam sobre uma camada fina de argamassa.


Parede incaica em aparelho poligonal, Cusco. Foto: McKay Savage, 2012
Figura 55: Parede incaica em aparelho poligonal, Cusco. Foto: McKay Savage, 2012

A forma mais monumental da pedra aparelhada é o aparelho poligonal. Ele tem esse nome porque as pedras são regularizadas em formas de polígonos predominantemente convexos, que não formam fiadas regulares. fig. 55


Saqsaywamán, fortificação em aparelho poligonal perto de Cusco, império inca, 1438. Foto: Dennis Jarvis, 2009
Figura 56: Saqsaywamán, fortificação em aparelho poligonal perto de Cusco, império inca, 1438. Foto: Dennis Jarvis, 2009

O aparelho poligonal é especialmente adequado para o trabalho com ferramentas em pedra polida ou bronze, porque os blocos só precisam ser um pouco desbastados para encontrar o encaixe perfeito entre eles. As muralhas incaicas dos séculos XIV e XV são terraplenos com arrimos em aparelho poligonal (fig. 56).

Do aparelho poligonal, podemos passar para os sistemas que formam fiadas mais ou menos horizontais. O arquétipo da construção murária é a estrutura em blocos de adobe sobre um baldrame em pedra lavrada; o conjunto pode ser reforçado e contraventado com esteios, frechais e baldrames em madeira, como nas habitações neolíticas de Çatal Höyük (ver fig. 36).


O sistema inteiro recebe um reboco feito do mesmo barro que os blocos de adobe, eventualmente acrescido de cal (fig. 57). Os elementos construtivos começam a sobressair por debaixo desse revestimento como se fossem molduras decorativas, especialmente articulando os cantos, rodapés e coroamentos.

Diorama de uma célula em Çatal Höyük. Foto: Eleicht, 2009
Figura 57: Diorama de uma célula em Çatal Höyük. Foto: Eleicht, 2009


Porta dos Leões, cidade heládica de Micenas, Grécia, c. 1350 a.C. Foto: Andy Hay, 2016
Figura 58: Porta dos Leões, cidade heládica de Micenas, Grécia, c. 1350 a.C. Foto: Andy Hay, 2016

Várias tradições construtivas monumentais usam pedras aparelhadas formando fiadas mais ou menos horizontais. Um dos exemplos mais conhecidos é o da Grécia na Idade do Bronze, onde foram construídas grandes muralhas em pedra aparelhada sem argamassa. Essas muralhas gregas são chamadas de ciclópicas, porque o tamanho das pedras é digno desses gigantes mitológicos, os cíclopes (fig. 58).


Outra tradição arquitetônica monumental é a dos maias, na Mesoamérica. Em cidades como Palenque, os muros em pedra aparelhada foram usados tanto como arrimos de terraplenos formando as famosas pirâmides, quanto para construir palácios e templos. Nesses casos, as pedras maiores e mais regulares eram usadas para dar a amarração das quinas dos pilares e das paredes, e os miolos foram preenchidos com pedras menores (fig. 59).

Palácio maia no sítio de Palenque, atual México, século VII d.C. Foto: Bernard Dupont, 2020
Figura 59: Palácio maia no sítio de Palenque, atual México, século VII d.C. Foto: Bernard Dupont, 2020

Figura 60: Palácios maias

Em qualquer caso, as paredes maias recebiam acabamento em cantaria de pedra: blocos com acabamento retangular e liso em todas as faces. fig. 60

Cantaria

Amarração de parede em cantaria, segundo Julien Guadet
Figura 61: Amarração de parede em cantaria, segundo Julien Guadet

A cantaria de pedra foi muito usada na Grécia dos períodos arcaico e clássico porque há mármore em abundância na bacia do mar Egeu, além de calcáreo de boa qualidade no sul da Itália, as principais regiões de povoação grega. Uma amarração comum de cantaria é alternar fiadas de perpianhos com fiadas de blocos ao comprido (fig. 61).


Essas pedras permitem esculpir detalhes arquitetônicos precisos, o que era uma característica da arquitetura erudita entre os gregos. Essa identidade entre cantaria de pedra e arquitetura clássica grega é tão forte que Vitrúvio chama as paredes em cantaria de “aparelho grego” (fig. 62).

Mnésicles, arquiteto, Erecteu, Atenas, 421–406 a.C. Parede estrutural em cantaria de pedra simples. Foto: Pedro P. Palazzo, 2011
Figura 62: Mnésicles, arquiteto, Erecteu, Atenas, 421–406 a.C. Parede estrutural em cantaria de pedra simples. Foto: Pedro P. Palazzo, 2011

Parede mista

Quando uma parede não é só um par de linhas paralelas numa planta? Quando ela é uma montagem de elementos que se complementam e reforçam uns aos outros. A forma mais tradicional de se atingir essa complementaridade é com a chamada parede mista ou espessa, formada por um miolo entre duas estruturas de revestimento.Mascarenhas, Sistemas de construção.

Exceto nas paredes ciclópicas, quase todas as paredes em alvenaria têm alguma articulação entre elementos que dão um melhor desempenho à parede. A combinação mais simples possível é entre o miolo estrutural da parede e um revestimento simplesmente aderido à superfície dessa parede, como reboco, mosaico ou azulejo.

A argamassa usada como revestimento pode ser uma versão mais magra (com menos cal) da argamassa de assentamento da alvenaria; no caso de uma argamassa colante para assentar azulejos, ao contrário, ela deve ter mais cal. A técnica de base de um revestimento murário simples é sobrepor camadas cada vez mais maleáveis do mesmo reboco, até finalizar com uma camada muito líquida e tingida, ou com uma pintura à base de cal. O reboco pode servir de suporte a uma variedade de elementos decorativos ou de proteção: seixos rolados, conchas, fragmentos de vidro ou cerâmica formando mosaicos, ou ainda ladrilhos vidrados.

“Concreto” romano

Parede em obra testácea, segundo Middleton, 1982, ap. Waddell, 2015
Figura 63: Parede em obra testácea, segundo Middleton, 1982, ap. Waddell, 2015

O chamado “concreto romano” é o caso mais emblemático de parede espessa no mundo Antigo. Esse sistema tem, na verdade, muito pouco a ver com o concreto armado moderno, e muito mais com a parede mista da Mesopotâmia. A alvenaria romana é na verdade uma variedade de sistemas construtivos que envolvem alguma combinação de pedregulhos mais ou menos regularizados e tijolos cozidos (fig. 63).

Os sistemas construtivos em uso corrente na Itália antes e durante o império Romano podem ser rotulados no seu conjunto como aparelhos cimentícios, ou seja, construções com bastante argamassa de assentamento. Esses sistemas são compostos por três tipos de aparelhos, ou modos de “armar” os blocos:

Incerto

Formado por pedregulhos do tamanho de um punho ou um pouco maiores, apenas regularizados em formas poligonais variadas, assentados com bastante argamassa para preencher os vãos.

. . .

Reticulado

Formado por pedregulhos do mesmo tamanho, mas regularizados com uma face quase perfeitamente quadrada e a face oposta irregular, para melhor aderência ao miolo da parede. Existe um meio-termo entre o aparelho incerto e o reticulado, que é o semi-reticulado.

. . .

Testáceo

Formado pelos tijolos romanos de grandes dimensões — um pé e meio ou dois pés —, usados inteiros para juntar as duas faces da parede ou cortados ao longo da diagonal para dar mais aderência ao miolo da parede. Geralmente usado em fiadas ou cunhais para estabilizar uma parede em aparelho reticulado.

Aparelhos romanos: em elevação, (a) incerto, (b) reticulado; (c) ambos, em planta
Figura 64: Aparelhos romanos: em elevação, (a) incerto, (b) reticulado; (c) ambos, em planta
Obra testácea associada ao aparelho reticulado e a fiadas de regularização em cantaria de pedra
Figura 65: Obra testácea associada ao aparelho reticulado e a fiadas de regularização em cantaria de pedra

Vitrúvio defendia que o aparelho incerto (fig. 64 [a]) era mais resistente pois as juntas são necessariamente desencontradas, e que o aparelho reticulado (fig. 64 [b]) era usado por causa da sua regularidade visual na superfície das paredes. Em ambos os casos, os blocos eram talhados de modo a garantir uma boa superfície de aderência com o miolo da parede (fig. 64 [c]). Esse miolo é, também, uma forma de aparelho incerto, onde os blocos não têm nenhuma face regular e estão assentados num volume maior de argamassa.

Por causa dessa fragilidade do aparelho reticulado, o seu uso mais comum é numa obra mista, em associação com o aparelho testáceo (fig. 65). Os tijolos nesse sistema servem a dois propósitos: primeiro, são usados como cunhais, ou amarrações que solidarizam a parede na direção vertical, especialmente nos ângulos; segundo, eles aparecem em fiadas de regularização, às vezes associados à cantaria de pedra. Essas fiadas servem para garantir o assentamento homogêneo da parede e a solidarizar na direção horizontal.

O dimensionamento recomendado por Palladio, que nos dá as indicações mais práticas e claras a esse respeito, é o seguinte (ver fig. 9):

  1. A parede do pavimento superior terá uma vez de alvenaria (a espessura da parede é determinada pelo comprimento de um tijolo);

. . .

  1. Cada pavimento sucessivo para baixo deve aumentar essa espessura em meia vez.

Cunhais

Um ponto de fragilidade especialmente importante para as paredes são as extremidades. É raro que uma parede simplesmente termine no seu alinhamento; o mais comum é ela formar uma quina com outra parede. Essa junção entre paredes, perpendiculares ou não, sempre está sujeita a que os dois tramos se movimentem separadamente um do outro. fig. 66

Junção entre paredes não solidarizadas, segundo Julien Guadet
Figura 66: Junção entre paredes não solidarizadas, segundo Julien Guadet

Por causa dessa fragilidade, é importante prever cunhais sobretudo em grandes construções em cantaria (fig. 67). Os cunhais são blocos talhados em forma de aspa, T ou cruz que solidarizam as paredes no seu ponto de encontro (fig. 68).

Esquema de cunhais, segundo Julien Guadet
Figura 67: Esquema de cunhais, segundo Julien Guadet

Cunhais em cantaria, segundo Julien Guadet
Figura 68: Cunhais em cantaria, segundo Julien Guadet

Os cunhais também podem ser usados ao longo de uma parede muito alta ou alongada, para dar maior estabilidade estrutural e visual, especialmente na arquitetura monumental (fig. 69).

Cunhais no meio de uma parede, segundo Julien Guadet
Figura 69: Cunhais no meio de uma parede, segundo Julien Guadet

Conclusão

Basílica de Maxêncio ou de Constantino, Roma, 306–312 d.C.
Figura 70: Basílica de Maxêncio ou de Constantino, Roma, 306–312 d.C.

A construção murária se destaca pela sua capacidade de compor volumes espaciais com grande clareza, como se eles fossem escavados na massa sólida da alvenaria. Esse modo de delimitar os espaços vai ser a característica dominante da construção romana, principalmente nos grandes edifícios públicos como a basílica de Maxêncio, do século IV d.C. (fig. 70).

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