Espaço ou vazio

Uma das principais diferenças entre a arquitetura tradicional e a moderna se refere aos processos construtivos, sua industrialização e consumo de uma quantidade muito maior de energia (no segundo caso). Isso faz com que esses processos se tornem deslocalizados e com cadeias produtivas extremamente profundas e concentradas em grandes (e poucos) agentes do mercado geralmente. Assim, contrastam bastante com a construção tradicional, que é bem mais local e artesanal.

Outra distinção fundamental entre ambas é a compreensão do conceito de espaço arquitetônico. Ele é muito característico da arquitetura moderna de um modo geral, tornando-se um de seus principais pontos ideológicos inclusive, sendo reformulado a partir de um universo cartesiano, newtoniano, infinito e totalmente homogêneo. Dessa forma, passa a ver a arquitetura como a arte de manipulá-lo ou organizá-lo, ou seja, tratá-lo como uma massa pré-existente independente de qualquer outra articulação arquitetônica do lugar.

Hoje em dia, o espaço é a sensibilidade por padrão da arquitetura. Aprendemos a visualizar espaços como manchas fluidas que se reorganizam a cada mudança de posição. Essa é a espacialidade canônica da arquitetura moderna.Banham, Teoria e projeto na primeira era da máquina; Argan, El concepto del espacio arquitectónico.

Os objetos da arquitetura são, literalmente, objetos físicos posicionados nesse espaço: pilares, lajes, divisórias, mobília, plantas e obras de arte diversas (fig. 1).

Oscar Niemeyer e Departamento de Arquitetura da Novacap, segundo anteprojeto para o andar nobre do Congresso Nacional, Brasília, 1957. Documentado por Elcio Gomes da Silva e José Manoel Morales Sánchez, 2009
Figura 1: Oscar Niemeyer e Departamento de Arquitetura da Novacap, segundo anteprojeto para o andar nobre do Congresso Nacional, Brasília, 1957. Documentado por Elcio Gomes da Silva e José Manoel Morales Sánchez, 2009

Oscar Niemeyer e Departamento de Arquitetura da Novacap, salão Verde do Congresso Nacional, Brasília, 1957–1960. Foto: Brasília na Trilha, 2015
Figura 2: Oscar Niemeyer e Departamento de Arquitetura da Novacap, salão Verde do Congresso Nacional, Brasília, 1957–1960. Foto: Brasília na Trilha, 2015

Uma obra de arquitetura moderna é um modo de articular o espaço na forma dessa substância fluída, amorfa e infinita a ser organizada. Ela ordena e coloca barreiras em alguns pontos para direcionar o fluxo do espaço, criando manchas e campos de força espaciais (fig. 2). Ela também posiciona objetos diversos (pilares, anteparos, divisórias, artes murais, focos de iluminação, mobiliário e superfícies de cores diferentes no chão, teto e paredes) para organizar o espaço existente (que é infinito), limitando-o como se fosse um fluído a ser manipulado. Este torna-se seu ambienta natural, sendo que suas obras mais celebradas são aquelas que levam tais elementos a suas últimas consequências. Como construção, percebe-se a individualidade de cada uma de suas partes com clareza, mesmo que com grandes continuidades, sendo essa sua essência formal: lajes, pilares, divisórias, painéis envidraçados, esquadrias, etc.

Planta “humanizada” de apartamento brasileiro contemporâneo
Figura 3: Planta “humanizada” de apartamento brasileiro contemporâneo

A arquitetura moderna corrente também produz volumes claramente delimitados, mas essa solução é mais um compromisso da espacialidade moderna com expectativas funcionais do que uma possibilidade intrínseca à sensibilidade espacial modernista. Ambientes modernistas concebidos como volumes tradicionais claramente delimitados em geral deixam a desejar do ponto de vista da expressividade arquitetônica e da organização formal (fig. 3).

Planta de apartamento em Uberlândia. Opção Empreendimentos, 2021
Figura 4: Planta de apartamento em Uberlândia. Opção Empreendimentos, 2021

Nota-se, então, um contraste com a arquitetura contemporânea das plantas de apartamentos padronizados das incorporações imobiliárias atuais (fig. 4), que não segue esse princípio, gerando resultados medíocres a partir de compartimentações muito determinadas e definidas (em razão das legislações, regulamentações e modos de vida das pessoas, que podem ser incompatíveis com a fluidez modernista). Ela resulta não da incapacidade dos arquitetos de apresentar melhores produtos, mas de conflitos e incompatibilidades de sensibilidades espaciais, os quais ainda têm o modernismo como referência, resultando em uma percepção insatisfatória.

Ilustra-se com o fato de que as reformas atuais mais celebradas são aquelas que revertem esse processo enclausuramento e compartimentação das plantas, trazendo mais fluidez para os espaços (figs. 5, 6).

CoDA Arquitetos, apartamento 410 Norte, 2017, planta antes e depois
Figura 5: CoDA Arquitetos, apartamento 410 Norte, 2017, planta antes e depois

CoDA Arquitetos, apartamento 410 Norte, 2017, vista da sala e cozinha integradas após remoção de uma divisória
Figura 6: CoDA Arquitetos, apartamento 410 Norte, 2017, vista da sala e cozinha integradas após remoção de uma divisória

Francisco Marcelino de Souza Aguiar, engenheiro, palácio Monroe, Rio de Janeiro, 1906. Planta do 1.º pavimento levantada em 1924
Figura 7: Francisco Marcelino de Souza Aguiar, engenheiro, palácio Monroe, Rio de Janeiro, 1906. Planta do 1.º pavimento levantada em 1924

Em contraste, as diferentes culturas arquitetônicas tradicionais adotam perspectivas variadas com respeito à leitura de volumes claramente delimitados ou de uma certa fluidez espacial. Na tradição clássica do Mediterrâneo, a volumetria de formas definidas predomina claramente (fig. 7).

A arquitetura moderna apresenta exemplos totalmente diferentes da maioria das arquiteturas tradicionais, que trabalham com volumes muito bem definidos desde o início. São observadas diversas variações em torno desse tema, de acordo com cada cultura edilícia, principalmente naquelas que funcionam mais à compressão, como acontece, especialmente, na bacia do Mediterrâneo, Índia e Sudeste asiático.

Por exemplo, as casas de banho romanas eram compostas numa grelha de formas geométricas muito bem definidas, com ambientes independentes e que se articulam de forma elegante e simétrica em geral (fig. 8). Seus elementos estão totalmente definidos e sua movimentação é limitada por volumes, sendo cada espaço independente um do outro, diferentemente da continuidade espacial da arquitetura moderna. Destaca-se que o vazio é um conceito muito modernista, já que na arquitetura tradicional ele é considerado o nada, o que ainda não recebeu forma.

Termas de Diocleciano, Roma, 298–306 d.C. Planta: Edmond Paulin, 1890
Figura 8: Termas de Diocleciano, Roma, 298–306 d.C. Planta: Edmond Paulin, 1890

Miguel Ângelo Buonarroti, arquiteto, Santa Maria degli Angeli e Martiri, Roma, 1562, implantada no tepidário das termas de Diocleciano. Foto: Pedro P. Palazzo, 2015
Figura 9: Miguel Ângelo Buonarroti, arquiteto, Santa Maria degli Angeli e Martiri, Roma, 1562, implantada no tepidário das termas de Diocleciano. Foto: Pedro P. Palazzo, 2015

Por isso, no caso da arquitetura tradicional, vamos nos referir mais a volumes, ou seja, formas geométricas em três dimensões, do que a espaços. A essência da arquitetura tradicional em vários contextos, especialmente na grande zona que vai da Índia ao Oriente Médio e Bacia do Mediterrâneo, é a lógica de que é feita para conter e delimitar um certo volume, como bolhas de sabão ocas em uma banheira ou os programas de modelagem em 3D que trabalham com faces e não sólidos. Esses volumes são facilmente percebidos como formas geométricas mais ou menos complexas, mas sempre claramente delimitadas, na experiência que se pode ter numa construção tradicional (fig. 9).

Ascensão da espacialidade moderna

Portanto, diferencia-se do espaço modernista nesse aspecto também, já que ele representa uma superfície contínua ou uma quantidade de ar ou vazio a ser organizada pela arquitetura (como uma pista de boliche repleta de sólidos (bola e pinos) a delimitar o vazio circundante ou os programas de modelagem em 3D que trabalham com sólidos). Esta ordenas tais espaços, enquanto a outra cria volumes por meio da delimitação ou construção das estruturas.

Não se fala em espaço ou vazio na arquitetura tradicional como algo que exista, diferentemente das teorias do vazio de Paul Ricœur e da Fenomenologia, que o entendem de forma mais abstrata. Trata-se de um conceito muito modernista e até mesmo contemporâneo (principalmente no final do século XX), difundindo-se como “algo que ainda não recebeu forma”. Desse modo, a arquitetura formata volumes e geometrias, que passam a existir a partir do momento em que são criados por ela, adquirindo, assim, significados arquitetônicos.

Destaca-se, aqui, outra diferença em relação à arquitetura modernista, na qual o espaço é aquilo que perpassa tudo, destacando-se a preocupação com a intervenção mínima em algumas de suas teorias ou projetos, como no térreo livre das superquadras de Brasília. Em contraposição, na arquitetura tradicional, o espaço vazio não existe antes de uma forma arquitetônica que o contenha, a qual pode ser claramente delimitada por colunatas ou arcadas. Estas darão uma leitura de fluxo um pouco mais livre e uma integração entre volumes diferentes e entre exterior e interior. Ainda assim, a possibilidade de uma transparência e permeabilidade (entre o que está de um lado ou outro da colunata ou arcada) depende da percepção da existência de algo em cada um desses lados, o que só é permitido pela delimitação espacial.

Sant’Ivo alla Sapienza, corte transversal por Dominique Barrière, c. 1695
Figura 10: Sant’Ivo alla Sapienza, corte transversal por Dominique Barrière, c. 1695

Já falamos sobre isso antes, mas não custa lembrar: a distinção entre arquitetura tradicional e moderna não tem a ver com qualquer determinismo cronológico. Existem obras tradicionais contemporâneas, e o historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan, que foi uma grande referência na conceituação da arquitetura moderna, mostrou como a espacialidade moderna tem raízes relativamente antigas, desde o barroco de Borromini no século XVII.Argan, El concepto del espacio arquitectónico.

Na segunda metade do século XX, Argan reforça que a noção moderna/modernista de espacialidade vem mesmo de longe, a partir de Newton, da Teoria cientifica do espaço infinito e de Hooke). Por exemplo, na capela de Sant’Ivo alla Sapienza, de Francesco Borromini, a noção de espaço por oposição ao volume começa a se configurar: não mais com um simples alinhamento de formas geométricas delimitadas uma ao lado da outra, mas com a manipulação e deformação dessas geometrias (fig. 10).

Apesenta um traçado regulador extremamente complexo e a manipulação e deformação dessas geometrias quase arbitrariamente, mesmo para uma lógica construtiva tradicional. Observa-se um volume claramente definito, destacando-se a presença de quatro fachadas, o piso e a linha de coroamento dos edifícios ao redor, a qual define um limite invisível no pátio ladeado por duas galerias de dois pavimentos com corredores. Tal configuração garante certa transparência e integração, ainda que uma marcada distinção entre cada elemento como algo separado e identificável seja mantida (fig. 11).

Francesso Borromini, Sant’Ivo alla Sapienza, 1642–1660. Planta por Dominique Barrière, 1720
Figura 11: Francesso Borromini, Sant’Ivo alla Sapienza, 1642–1660. Planta por Dominique Barrière, 1720

Pátio em frente a Sant’Ivo della Sapienza. Foto: Vlad Lesnov, 2010
Figura 12: Pátio em frente a Sant’Ivo della Sapienza. Foto: Vlad Lesnov, 2010

Muito menos é um juízo de valor. Tradicional não quer dizer anacrônico e nem antiquado. Construções tradicionais podem ser respostas tão ou mais válidas do que o modernismo para os problemas da sociedade contemporânea. A distinção, como já explicamos, tem a ver com o processo de produção das edificações e o tipo de raciocínio formal que esse processo favorece.

Hegel

G.W.F. Hegel no seu escritório, litografia por Julius Ludwig Sebbers, 1828
Figura 13: G.W.F. Hegel no seu escritório, litografia por Julius Ludwig Sebbers, 1828

O desenvolvimento dessa lógica espacial é muito mais antigo do que a teoria de Argan. O filósofo alemão G.W.F. Hegel (fig. 13) desenvolve a chamada Teoria da Forma Artística e do Processo de Produção da Arte, a partir de um curso de Estética ministrado na Universidade de Berlim, no início do século XIX.Hegel, Cursos de estética.

Nela, a arquitetura é vista como um processo de articulação cada vez maior do espaço, com a ressalva de que adota exemplos altamente questionáveis e seletivos para criar um esquema universal de evolução da arquitetura. O que interessa aqui é a maneira como o autor explica o suposto desenvolvimento gradual da espacialidade na arquitetura e de suas características, contribuindo para entender melhor a oposição entre espaço e volume. Então, Hegel estabelece três estágios na arquitetura e na arte em geral, que não podem ser vistos como um esquema para entender a História da arte como um todo, mas como a colocação de certos problemas interessantes para a discussão do espaço. Os três estágios de Hegel são:

Simbólico

Refere-se ao pensamento simbólico, que seria a primeira manifestação de complexidade nas sociedades humanas em períodos muito antigos. Trata-se de uma arquitetura que não articula identidade formal própria, já que praticamente não apresenta espaços habitáveis ou volumes internos definidos claramente (há apenas paredes e colunas), contando com pouquíssimo espaço livre entre esses elementos (figs. 14, 15). Em suma, seria apenas o suporte para decoração (escultura iconográfica e escrita esculpida nas paredes, tetos e colunas), não apresentando uma identidade própria enquanto arquitetura, pela ausência de uma articulação ou percepção do espaço. Entretanto, é possível considerá-la muito mais sofisticada do que isso, o que reforça o estabelecimento de uma visão bastante colonialista do Egito antigo nesse período, ao qualificá-la como se estivesse em um estágio inferior do desenvolvimento artístico.

Templo de Hathor, Dendera, iniciado em 54 a.C. Desenho: Auguste Mariette
Figura 14: Templo de Hathor, Dendera, iniciado em 54 a.C. Desenho: Auguste Mariette

Teto esculpido e pintado no templo de Hathor, Dendera. Foto:Fig Wright, 2011
Figura 15: Teto esculpido e pintado no templo de Hathor, Dendera. Foto:Fig Wright, 2011

Templos de Hera em Paestum (Possidônia), séculos VI e V a.C. Foto: V. Alfano, 2012
Figura 16: Templos de Hera em Paestum (Possidônia), séculos VI e V a.C. Foto: V. Alfano, 2012
Clássico

Em contraste com essa arquitetura simbólica, na Antiguidade grega e romana, o edifício se torna relativamente autônomo, ou seja, a arquitetura ultrapassa o estágio de mero suporte para decoração e sua própria forma passa a ser significativa e marcante na paisagem, adquirindo certa importância social.

Leo von Klenze, Reconstituição da Acrópole de Atenas, 1846. Óleo sobre tela
Figura 17: Leo von Klenze, Reconstituição da Acrópole de Atenas, 1846. Óleo sobre tela

Figura 18: Apolodoro de Damasco, arquiteto, Panteão, Roma, 113–125 d.C. Vista do interior filmada por Wanderlust Travel Videos, 2021
Romântico

Abarca tudo o que os alemães do início do século XIX consideravam como arte moderna, ou seja, praticamente toda a arte cristã europeia das Idades Média e Moderna. Aqui, a arquitetura sofre uma transição, passando a ser superada pela lógica da formação de volumes, na qual o edifício (que já havia sido importante por sua própria forma) vê essa importância passar para o volume que ele delimita. Essa é uma grande característica da arquitetura romântica da Idade Média e o início do século XIX. Assim, o lugar da arquitetura enquanto portadora de significados é ultrapassado pelo papel de uma forma de arte mais abstrata: a poesia, que é a modalidade artística das sociedades modernas e contemporâneas, por ser mais diretamente relaciona com o espírito.

Arquitetura romântica

Em suma, o importante é compreender a criação de uma consciência da volumetria, que é muito mais antiga do que a teoria de Hegel. Ressalta-se o entendimento dessa lógica conceitual, que começa com o olhar para a arquitetura como construção, ou seja, como partes tangíveis gerando uma certa forma estrutural. Muda-se o foco para o volume que essa construção delimita, reforçando-se sempre que não se trata de uma sequência cronológica na história da arte.

Figura 19: Modelo digital de Santa Sofia. Realização: Juan Álvarez.

Na arquitetura do sul da Ásia e da bacia do Mediterrâneo entre os séculos V e VI d.C., a sensibilidade sobre a preocupação com o volume arquitetônico quase atinge seu auge.

O império Bizantino nada mais é do que a continuação do império Romano ao longo da Idade Média. Na arquitetura religiosa, a continuidade entre a religião da Grécia clássica e o cristianismo do império Bizantino está na ideia de que o local de culto é um microcosmo: uma representação conceitual da ordem do universo.

Cúpula da igreja do mosteiro de Dafni, Atenas, 1080. Foto: Ktiv, 2017
Figura 20: Cúpula da igreja do mosteiro de Dafni, Atenas, 1080. Foto: Ktiv, 2017

Nesse esquema, as abóbadas da construção representam a abóbada celeste, com a figura do Cristo em majestade dominando a cúpula dourada no centro da nave (fig. 20).

Na arquitetura bizantina, observa-se um argumento teológico na articulação do céu com as abóbadas e a terra com o piso das edificações. É importante que a unidade geométrica fique clara, pois a igreja representa o universo que liga a terra ao céu.

O chão com piso em mármores coloridos e as paredes revestidas com o mesmo material representam a terra, onde se movimenta a congregação. fig. 21

Figura 21: Naves das igrejas do mosteiro de São Lucas de Stiris, Grécia, 1011–1012. Filmagem: René e Sylvie Franklin, 2018

Detalhe do piso da igreja menor, mosteiro de São Lucas de Stiris, Grécia, c. 960. Desenho em Robert Schultz e Sidney Barnsley, The Monastery of Saint Luke of Stiris…, 1901
Figura 22: Detalhe do piso da igreja menor, mosteiro de São Lucas de Stiris, Grécia, c. 960. Desenho em Robert Schultz e Sidney Barnsley, The Monastery of Saint Luke of Stiris…, 1901

A preocupação com a composição arquitetônica volta-se para o interior, mesmo considerando o cuidado com o perímetro externo, não sendo necessário expressar uma unidade geométrica, mas sim o interior. Por isso, nas cidades mais densas da Europa, não há espaços ao redor dos edifícios desse período.

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O microcosmo da igreja bizantina aproxima as figuras celestiais de Cristo e dos santos à congregação terrena. Por isso, a unidade do espaço arquitetônico vai ser um objetivo importante a ser perseguido. As plantas bizantinas mais antigas não são as mais satisfatórias desse ponto de vista. Elas adotam o que chamamos de partido em quina: cinco volumes principais em posições alternadas.

Esse tipo de planta ainda está presente na igreja primitiva da Mãe de Deus no mosteiro de São Lucas de Stiris, na metade do século X, mas vai ser alterada na construção da igreja maior (katholikon) já no início do século XI. fig. 23

Igrejas do mosteiro de São Lucas de Stiris, Grécia, c. 960 e 1011–1012. Planta em Robert Schultz e Sidney Barnsley, The Monastery of Saint Luke of Stiris…, 1901
Figura 23: Igrejas do mosteiro de São Lucas de Stiris, Grécia, c. 960 e 1011–1012. Planta em Robert Schultz e Sidney Barnsley, The Monastery of Saint Luke of Stiris…, 1901

Figura 24: Igreja do mosteiro de Dafní, Atenas, reconstruída c. 1050. Filmagem: Yannis Tzitzas, 2019.

A definição espacial se volta sobretudo para o interior da edificação. A volumetria externa da construção acomoda, então, todos os elementos que não podem romper a unidade do interior: contrafortes, projeções e reentrâncias da estrutura e dos ambientes, além de deixar a alvenaria aparente, sem revestimento (fig. 24). Isso não quer dizer que o acabamento exterior fosse descuidado, mas que ele não precisava nem representar um edifício prismático simples, como os antigos templos gregos, e nem delimitar um espaço exterior com uma forma geométrica importante.

No Mediterrâneo ocidental, a busca pela definição dos volumes vai seguir outros caminhos entre os séculos IX e XII.

Observamos diversas formas de articulação desses volumes, principalmente, na arquitetura religiosa. Nota-se uma certa fluidez, que transparece entre os volumes, ainda que estes estejam sempre delimitados com clareza e em formas sucessivas, que podem estar refletidas nos exteriores (nos pátios, por exemplo).

As igrejas dos mosteiros católicos do século VIII em diante são montagens de vários elementos: um adro descoberto cercado por galerias, uma basílica em forma de cruz latina com três naves, e entre esses dois elementos um Westwerk — literalmente “obra ocidental”. figs. 25, 26

Planta reconstituída da igreja na abadia de São Ricário (Cêntula), França, 790–799. Desenho: JMaxR, 2009
Figura 25: Planta reconstituída da igreja na abadia de São Ricário (Cêntula), França, 790–799. Desenho: JMaxR, 2009

Planta reconstituída da igreja na abadia de Corvey, Alemanha, 873–885. Desenho: JMaxR, 2009
Figura 26: Planta reconstituída da igreja na abadia de Corvey, Alemanha, 873–885. Desenho: JMaxR, 2009

O Westwerk forma a fachada oeste da igreja. Mas ele é uma fachada tão incrementada que vira o seu próprio edifício, como o da abadia de Corvey, no norte da Alemanha (fig. 27).

Figura 27: Vista aérea do castelo de Corvey. Filmagem: Obele Skywalker, 2016

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Figura 28: Westwerk da igreja na abadia de Corvey, Alemanha, 873–885. Maquete: Fundação Welterbe-Westwerk-Corvey.

Igreja da abadia de Saint-Philibert, Tournus, 928–1120. Vista isométrica dos módulos estruturais das naves, segundo Auguste Choisy, 1899
Figura 29: Igreja da abadia de Saint-Philibert, Tournus, 928–1120. Vista isométrica dos módulos estruturais das naves, segundo Auguste Choisy, 1899

A chave para resolver as perspectivas contínuas na arquitetura da Europa ocidental é o módulo estrutural. As abóbadas de berço lineares podem ser substituídas por cruzarias, ou abóbadas que se interpenetram. Isso nos dá um módulo simples formado por quatro pontos de apoio e, no século XI, uma abóbada de aresta. Esse módulo resolve a maior parte dos seus empuxos dentro do seu próprio sistema, e descarrega só uma pequena parte desse empuxo nos módulos vizinhos. fig. 29

Isso, por sua vez, permite que a edificação seja construída pouco a pouco, ao longo de muitos anos. Com isso, uma comunidade pode construir igrejas muito grandes ao longo de décadas, sem risco para a estabilidade da obra inacabada (fig. 30).

Igreja da abadia de Saint-Philibert, Tournus, 928–1120, segundo Jean Virey, 1903
Figura 30: Igreja da abadia de Saint-Philibert, Tournus, 928–1120, segundo Jean Virey, 1903

Saint-Philibert, Tournus, planta com fases sucessivas da construção. Desenho: J. Chancerel, 2018
Figura 31: Saint-Philibert, Tournus, planta com fases sucessivas da construção. Desenho: J. Chancerel, 2018

Saint-Philibert, Tournus, vista da nave central. Foto: Christophe Finot, 2014
Figura 32: Saint-Philibert, Tournus, vista da nave central. Foto: Christophe Finot, 2014

Robert de Luzarches, arquiteto, depois Thomas e Renaud de Cormont, chefes de canteiro. Nave da catedral de Amiens, 1220–1270. Foto: Zairon, 2018
Figura 33: Robert de Luzarches, arquiteto, depois Thomas e Renaud de Cormont, chefes de canteiro. Nave da catedral de Amiens, 1220–1270. Foto: Zairon, 2018

Quatro elementos da arquitetura

Volumetria e cultura

Índia antiga e bacia do Mediterrâneo: arquitetura produz espaços; caráter dado pela extensão e forma geométrica dos volumes interiores.

Índia medieval: arquitetura demarca lugares; caráter dado pela posição do monumento, pouca articulação dos espaços interiores — diminutos e/ou receptáculos ornamentados para um ponto focal material.

Observa-se uma sensibilidade espacial que se desenvolve muito cedo em sua tradição arquitetônica, apresentando uma clareza na articulação de volumes, que serão extremamente legíveis e com articulações complexas para formar grandes palácios frequentemente. Destaca-se a tradição dos relevos, que darão uma leitura clara da delimitação dos espaços e volumes, mesmo quando existem muitas aberturas e grande fluidez (características de uma região de clima muito úmido e com alta demanda por ventilação cruzada).

Arquitetura edicular.Hardy, “Kashmiri Temples: A Typological and Aedicular Analysis”; Bharne e Krusche, Rediscovering the Hindu Temple.

Índia antiga: do lugar ao volume

Reconstituição do Templo 40 em Sāñcī, segundo Percy Brown, 1959
Figura 34: Reconstituição do Templo 40 em Sāñcī, segundo Percy Brown, 1959

Portal da caverna de Lomas Ṛṣi, Bihar, 250–185 a.C. Foto: Photo Dharma, 2013
Figura 35: Portal da caverna de Lomas Ṛṣi, Bihar, 250–185 a.C. Foto: Photo Dharma, 2013

Volumetria da caverna de Lomas Ṛṣi. Desenho: Percy Brown, 1959
Figura 36: Volumetria da caverna de Lomas Ṛṣi. Desenho: Percy Brown, 1959

Palácios representados em relevos em Sāñchī, Amaravātī e Mathurā, reproduzidos por Coomaraswamy
Figura 37: Palácios representados em relevos em Sāñchī, Amaravātī e Mathurā, reproduzidos por Coomaraswamy

Procissão de Prasenajit de Kosala deixando Saravasti para se encontrar com o Buda, relevo na toraṇa norte da estupa 1 em Sāñcī, 50–25 a.C. Foto: Biswarup Ganguly, 2017
Figura 38: Procissão de Prasenajit de Kosala deixando Saravasti para se encontrar com o Buda, relevo na toraṇa norte da estupa 1 em Sāñcī, 50–25 a.C. Foto: Biswarup Ganguly, 2017

Características do palácio indiano:

  • Elevado sobre uma plataforma baixa, com acesso por uma escadaria com balaustradas e cujo primeiro degrau é semicircular;
  • Alongado na direção transversal;
  • Primeiro nível aberto, habitação nos níveis superiores;
  • Kūṭagāra: pavilhão coberto no terraço.

Representação de palácios em Amarāvatī e Kāṭhiāwāṛ, reproduzidas por Coomaraswamy
Figura 39: Representação de palácios em Amarāvatī e Kāṭhiāwāṛ, reproduzidas por Coomaraswamy

Cidade de Kuśināgarā, cena da guerra das relíquias, relevo na toraṇa (portada) sul da estupa 1 em Sāñcī, Madhya Pradesh, reinado de Sātakaṇi II, 50–25 a.C. Foto: Anandajoti Bhikku, 2017
Figura 40: Cidade de Kuśināgarā, cena da guerra das relíquias, relevo na toraṇa (portada) sul da estupa 1 em Sāñcī, Madhya Pradesh, reinado de Sātakaṇi II, 50–25 a.C. Foto: Anandajoti Bhikku, 2017

Reconstituição do portão da cidade de Kuśināgarā segundo Percy Brown, 1959
Figura 41: Reconstituição do portão da cidade de Kuśināgarā segundo Percy Brown, 1959

Rei Bimbisara partindo de Rajāgṛha para visitar o Buda, relevo na toraṇa sul da estupa 1 em Sāñcī, 50–25 a.C. Foto: Biswarup Ganguly, 2017
Figura 42: Rei Bimbisara partindo de Rajāgṛha para visitar o Buda, relevo na toraṇa sul da estupa 1 em Sāñcī, 50–25 a.C. Foto: Biswarup Ganguly, 2017

Reconstituição de um portão de cidade indiana antiga, por Coomaraswamy. Níveis superiores
Figura 43: Reconstituição de um portão de cidade indiana antiga, por Coomaraswamy. Níveis superiores

Reconstituição de um portão de cidade indiana antiga, por Coomaraswamy. Nível térreo
Figura 44: Reconstituição de um portão de cidade indiana antiga, por Coomaraswamy. Nível térreo

Relevo na passarela elevada da estupa 1 em Sāñcī, 50–25 a.C. Foto: Photo Dharma, 2017
Figura 45: Relevo na passarela elevada da estupa 1 em Sāñcī, 50–25 a.C. Foto: Photo Dharma, 2017

Cena celestial, toraṇa leste da estupa 1 em Sāñcī, 50–25 a.C. Foto: Biswarup Ganguly, 2017
Figura 46: Cena celestial, toraṇa leste da estupa 1 em Sāñcī, 50–25 a.C. Foto: Biswarup Ganguly, 2017

Templo (pura) é um palácio (prāsāda) abstraído e verticalizado.

Ásia medieval: do volume ao lugar

O desenvolvimento de volumes com formas geométricas claramente definidas não é um progresso linear, nem muito menos inevitável, rumo a um objetivo predefinido. O desenvolvimento da arquitetura hinduísta na Índia, a partir do século V d.C., percorre o caminho inverso.

Os ritos hinduístas não reúnem uma grande congregação num mesmo lugar para uma liturgia demorada; em vez disso, eles têm procissões e demonstrações individuais ou familiares de devoção. Por isso, os templos não precisam de um amplo espaço interior. A volumetria externa é priorizada (fig. 47).

Gruta n.º 10, Ajanta, Mahārashtra, oeste da Índia, século I a.C. Corte transversal por James Fergusson, Illustrated Handbook of Architecture v. 1
Figura 47: Gruta n.º 10, Ajanta, Mahārashtra, oeste da Índia, século I a.C. Corte transversal por James Fergusson, Illustrated Handbook of Architecture v. 1

Salão chaitya maior nas grutas budistas de Karli, Mahārashtra, oeste da Índia, 50–70 e 120 d.C. Corte perspectivado por Percy Brown, 1959
Figura 48: Salão chaitya maior nas grutas budistas de Karli, Mahārashtra, oeste da Índia, 50–70 e 120 d.C. Corte perspectivado por Percy Brown, 1959

As cavernas escavadas budistas são o ápice dessa tradição arquitetônica indiana, características de uma tradição budista mais tardia, apresentando volumes claramente legíveis, com cilindros, primas e cúpulas desde o século I d.C. O desenvolvimento do Hinduísmo no século VI d.C. leva ao caminho inverso, entendido como declínio da civilização indiana sob a perspectiva colonialista, pelo abandono dos grandes volumes claramente delimitados, passando a encolhê-los, por razões litúrgicas e culturais, já que sua devoção é mais intimista e individual, sem as demandas budistas para grandes espaços de congregação.

Gruta hinduísta n.º 15, Ellora, Mahārashtra, c. 550–800. Foto: Sailko, 2019
Figura 49: Gruta hinduísta n.º 15, Ellora, Mahārashtra, c. 550–800. Foto: Sailko, 2019

Gruta maior hinduísta, complexo hindu-budista de Elephanta, Mahārashtra, c. 550. Planta por TheMandarin, 2010
Figura 50: Gruta maior hinduísta, complexo hindu-budista de Elephanta, Mahārashtra, c. 550. Planta por TheMandarin, 2010

A gruta hinduísta é mais limitada e com menor fluidez espacial para a devoção, que se torna mais individual sem a necessidade de grandes volumes para receber muitas pessoas. Diferente da gruta budista, que apresenta maior congregação de indivíduos e fluidez. Assim, os volumes internos vão se encolhendo em massas escultóricas inseridas em grandes volumes externos, que se tornam seu elemento mais importante.

Figura 51: Passeio pela gruta hinduísta de Elephanta. Filmagem: Wonderliv Travel, 2018.

Plantas e cortes do Kailaśanath em Ellora. Desenho em Henri Stierlin, Índia hindu
Figura 52: Plantas e cortes do Kailaśanath em Ellora. Desenho em Henri Stierlin, Índia hindu

Mandapa de Shiva, Kailaśanath, Ellora. Foto: Sailko, 2019
Figura 53: Mandapa de Shiva, Kailaśanath, Ellora. Foto: Sailko, 2019

Os templos com espaço interno muito pequeno ou mesmo inexistente são mais comuns no sul da Índia, na região tâmil.

Figura 54: Templo da orla, Mahaballipuram. Filmagem: Rajinikanth, My Travelling Chronicles, 2021.

Templo da orla, Mahaballipuram, reino Pallava, primeiro quartel do século VIII. Planta: Sarah Welch, 2021
Figura 55: Templo da orla, Mahaballipuram, reino Pallava, primeiro quartel do século VIII. Planta: Sarah Welch, 2021

Em vez de ter um grande salão interior, o Templo da orla em Mahaballipuram, do início do século VIII, apresenta um volume verticalizado muito marcante (fig. 54).

Pancha ratham (cinco carros), Mahaballipuram, c. 630. Foto: G. Saravanan, 2007
Figura 56: Pancha ratham (cinco carros), Mahaballipuram, c. 630. Foto: G. Saravanan, 2007

marco sagrado sob uma árvore
a
o marco é convertido num pequeno oratório
b
oratório ampliado com cobertura efêmera; o lugar se torna um ponto focal da comunidade
c
o oratório é ampliado para se tornar um templo rudimentar
d
o lugar sagrado persiste mesmo após a morte da árvore; o templo é ampliado e o entorno se urbaniza
e

Figura 57: Esquema de sucessão num lugar sagrado. Desenhos de Vinayak Bharne e Komal Panjwani, em Vinayak Bharne e Krupali Krusche, Rediscovering the Hindu Temple. a – marco sagrado sob uma árvore, b – o marco é convertido num pequeno oratório, c – oratório ampliado com cobertura efêmera; o lugar se torna um ponto focal da comunidade, d – o oratório é ampliado para se tornar um templo rudimentar, e – o lugar sagrado persiste mesmo após a morte da árvore; o templo é ampliado e o entorno se urbaniza

No leste da Ásia, a composição de volumes claramente definidos nunca foi uma prioridade. Algumas cavernas no noroeste da China apresentam uma leitura espacial clara, mas esses exemplares são a exceção numa cultura que assume a fluidez espaciais decorrente dos esqueletos em madeira.

Mediterrâneo: elaboração de volumes

  • Cristo Pantokrator, Bizâncio
  • Igreja dos Dízimos, Kiev
  • Portão dourado, Vladimir
  • Catedral de Ani
  • Complexo de Sanahin, Lori
  • São Ciríaco, Genrode
  • São Miguel, Hildesheim
  • Dom zu Speyer
  • Sainte-Foy de Conques
  • Durham Cathedral
  • Canterbury
  • Duomo di Cefalù
  • Santa Maria Novella, Monreale
  • Santiago de Compostela
  • Santo Sepulcro
  • Duomo di Modena
  • Duomo di Pisa
  • Batistérios: Pisa, Pavia, Parma, Florença

Alberti

Ocupação do solo: regio, area, partitio. Implantação e divisas.

Nikolaus Pevsner

  • História da construção = história da técnica
  • História da função = história econômica
  • História do estilo = história da arquitetura

Visão reacionária de Pevsner sobre pertinência de aspectos materiais no domínio da arquitetura. Não subscrevemos à distinção acima.

Multiplicação de programas arquitetônicos específicos desde a revolução industrial:Pevsner, A History of Building Types.

  • Monumentos nacionais e ao intelecto
  • Edifícios do poder político tradicional:
    • Castelos ou palácios
    • Paços municipais
  • Edifícios do poder político moderno:
    • Parlamentos
    • Administração do estado central
    • Prefeituras e administração local ou regional
    • Tribunais
  • Teatros
  • Bibliotecas
  • Museus
  • Hospitais
  • Prisões
  • Hotéis
  • Bolsas de valores e bancos
  • Armazéns e edifícios de escritórios
  • Estações ferroviárias
  • Mercados, conservatórios e galerias de exposição
  • Oficinas, comércios e lojas de departamentos
  • Fábricas

Não é que essas necessidades não existissem antes (com algumas exceções, como a ferrovia). O que muda com a revolução industrial é a especifidade dos requisitos funcionais e, em vários casos, a escala das áreas no programa de necessidades.

Tipos distributivos

A história da arquitetura contemporânea se desenrola em torno da transição de tipos edilícios preconcebidos para composições com elementos individuais predefinidos — salas, vestíbulos, circulações — e daí para projetos a partir de programas funcionais abstratos.

Composição e distribuição

. . .

  • Composição: proporcionar as formas e as dimensões das salas e das circulações segundo a sua importância e propósito

. . .

  • Distribuição: dispor e interligar as salas e as circulações segundo a conveniência prática e as convenções sociais

Ambas essas ações dizem respeito, é claro, ao que chamamos hoje em dia de necessidades funcionais da arquitetura: ou seja, atender às áreas estipuladas no programa de necessidades e fazer com que a circulação e o serviço no edifício aconteçam do modo mais eficiente possível. Mas a composição e a distribuição também dizem respeito a necessidades simbólicas e sociais: mostrar de algum modo o caráter do edifício e o seu papel na cidade e na sociedade, deixar claro onde estão os destinos principais da circulação dentro dele, etc.

Tipologia tradicional, composição clássica e projeto moderno

A existência de um certo número de tipos — ideias de edificações dadas a priori — é um dos aspectos que definem uma cultura arquitetônica como sendo tradicional.Petruccioli, “Exoteric, Polytheistic, Fundamentalist Typology”.

Há vários esquemas teóricos que tentam explicar como os tipos se formam e se transformam.Muratori, “Studi per una operante storia urbana di Venezia”; Moudon, “Typomorphology”.


Um desses esquemas, proposto pelo professor C. William Westfall da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos,Westfall, “Building Types”.

propõe reduzir todas as formas tangíveis dos tipos edilícios a sete propósitos sociais abstratos (fig. 58).

Sete tipos edilícios. Baseado em Westfall, 1991
Figura 58: Sete tipos edilícios. Baseado em Westfall, 1991

Andrea Palladio, arquiteto, esquemas de composição de diferentes ville segundo Hersey e Freedam
Figura 59: Andrea Palladio, arquiteto, esquemas de composição de diferentes ville segundo Hersey e Freedam

Como quer que seja, a tipologia edilícia visualiza as construções no seu conjunto com uma organização predefinida ainda que flexível. Mas, ao longo do Renascimento na Europa, esses tipos gerais começam a ser desmembrados em partes que podem ser recombinadas de diferentes modos. Nas ville ou casas de fazenda projetadas por Andrea Palladio na segunda metade do século XVI, o que define o caráter das construções não é a aderência a uma ideia visual predefinida — que não estava consagrada até então — e sim a exploração de variações num esquema de distribuição de salas principais e secundáriasSchumacher, “The Palladio Variations”.

(fig. 59).

A partir da metade do século XVIII, vemos uma tentativa de racionalização dos programas arquitetônicos a partir do conceito de “distribuição” dos ambientes.Etlin, “Les Dedans”; Blondel, De la distribution des maisons de plaisance, et de la décoration des édifices en général.


Comparação de palácios romanos e genoveses dos séculos XVI–XVIII. Desenhados por J.N.L. Durand, Recueil et parallèle des édifices de tout genre…, pr. 54
Figura 60: Comparação de palácios romanos e genoveses dos séculos XVI–XVIII. Desenhados por J.N.L. Durand, Recueil et parallèle des édifices de tout genre…, pr. 54

Na escola Politécnica (escola de engenharia), Durand ensina projeto arquitetônico reduzindo os programas a princípios gerais com estilos intercambiáveis (fig. 60).


No sistema de Durand, a composição não é racionalizada segundo programas estritamente funcionais, mas segundo a destinação geral do edifícioDurand, Précis des leçons d’architecture données à l’École polytechnique; Durand, Partie graphique des cours d’architecture.

(fig. 61). É um modo de dar um reset nos propósitos fundamentais da arquitetura.

J.N.L. Durand, resolução de composições para edifícios privados com proporção de 3:1 nos vãos. Partie graphique des cours d’architecture…
Figura 61: J.N.L. Durand, resolução de composições para edifícios privados com proporção de 3:1 nos vãos. Partie graphique des cours d’architecture…

J.N.L. Durand, edifícios planejados sobre grelha uniforme. Partie graphique des cours d’architecture…
Figura 62: J.N.L. Durand, edifícios planejados sobre grelha uniforme. Partie graphique des cours d’architecture…

Em vez de desenvolver as necessidades contemporâneas em cima do legado das formas já elaboradas pelo processo tipológico, Durand quer recomeçar do zero criando novas formas a partir de um plano cartesiano dividido por uma grelha homogênea. Esse procedimento deixa claro que qualquer hierarquia formal ou espacial proposta sobre essa grelha é uma decisão de certo modo arbitrária (fig. 62).

O Renascimento abriu o caminho para se pensar no edifício não mais como uma ideia de conjunto e sim como uma composição de elementos — salas e circulações — de formas predefinidas. Em cima disso, a grelha uniforme proposta como método de composição por Durand abre o caminho para se pensar no edifício como uma soma de áreas definidas num programa de necessidades. Portanto, na sequência da tipologia tradicional e da composição clássica, vamos chegar ao projeto na arquitetura contemporâneo.

Compor ou projetar

Na arquitetura tradicional, o que se realiza é uma composição arquitetônica, não um projeto. Podemos usar a música como analogia: dispomos as notas e os silêncios, que são elementos preexistentes, em um compasso. Trata-se do arranjo de elementos dados há séculos. Na composição, as formas geométricas existentes que já estão dadas (volumes) são compostas e proporcionadas entre si, sendo distribuídas em um conjunto arquitetônico organizado, harmonioso, etc.

Base da arquitetura tradicional: compor/escolher volumes e distribuí-los/ligá-los para formar conjuntos com volumes claramente definidos internamente (ligar ou separar elementos em uma composição).

Figura 63: Helio Piñón no Congresso Internacional EAUCLM–T, 2011

A composição é a chave de certas tradições arquitetônicas, como aquelas vistas na Europa, contando com a manipulação de malhas espaciais contínuas, já a caminho da forma mais moderna de espaço. Alta capacidade tecnológica para articulação de diferentes elementos construtivos.

Chega-se, então, à atual concepção de projeto, que não se baseia em nada que seja dado “a priori”, sendo definido caso a caso e não mais a partir da composição de elementos pré-existentes.

O professor Helio Piñón, da Universidade de Valência, na Espanha, articulou uma teoria do que é o projeto arquitetônico moderno. Segundo Piñón:

. . .

De agora em diante, o papel do projetista não se reduz mais a gerir com maior ou menor competência convenções tipológicas e sistemas de ordenamento sem margem para controvérsias: a partir de agora, a sua atividade implica plenamente a concepção de edifícios segundo critérios que variam caso a caso. E tudo isso sem contar com regras predefinidas que garantam a correção do produto: o processo de projeto se dedica, em todo caso, a encontrar as leis formais específicas que darão identidade à obra […]Piñón, Teoría del proyecto, 102 (grifo nosso).

Podemos questionar se é válido projetar como quer Piñón, sem levar em consideração nada além dos critérios intrínsecos a cada programa considerado “caso a caso” e também se é realmente possível eliminar toda a bagagem cultural prévia, seja ela clássica ou “modernista”. De qualquer modo, essa teoria é útil para confrontarmos o paradigma, digamos, não moderno de uma arquitetura baseada na composição com elementos predefinidos.


Claude Perrault, Ordem das cinco espécies de colunas segundo o método dos Antigos, 1683
Figura 64: Claude Perrault, Ordem das cinco espécies de colunas segundo o método dos Antigos, 1683

Esses elementos podem ser físicos, como as cinco ordens canônicas da arquitetura clássica, aqui na forma do sistema de proporções desenvolvido pelo erudito francês Claude Perrault no final do século XVII (fig. 64).

Esses elementos também podem ser os vazios entre a matéria construída. Na arquitetura tradicional, esses vazios quase sempre têm uma forma geométrica fácil de apreender e nitidamente delimitada pelos elementos da construção. Portanto, os elementos da construção servem para delimitar elementos de composição que são a utilidade da arquitetura.

Elementos de composição

Formas volumétricas

Mais cedo, dissemos que arquitetura é construção. Mas para que serve a construção? O seu propósito, como nos diz Semper na sua alegoria da cabana primitiva,Semper, Die vier Elemente der Baukunst.

é cobrir e delimitar os lugares onde acontece a vida social.

Formas básicas de construções


Formas arquitetônicas primárias: adaptações do quadrado, triângulo e círculo, exemplos teóricos de tipos edilícios primários, p. 56
a
Exemplos históricos dos tipos arquitetônicos básicos, p. 57
b

Figura 65: Rob Krier, Architectural composition, 1988. a – Formas arquitetônicas primárias: adaptações do quadrado, triângulo e círculo, exemplos teóricos de tipos edilícios primários, p. 56, b – Exemplos históricos dos tipos arquitetônicos básicos, p. 57


Casos teóricos de deformação dos tipos primários, p. 58
a
Exemplos históricos de edifícios baseados em geometrias deformadas, p. 59
b

Figura 66: Rob Krier, Architectural composition, 1988. a – Casos teóricos de deformação dos tipos primários, p. 58, b – Exemplos históricos de edifícios baseados em geometrias deformadas, p. 59


Exemplos teóricos de divisão e ruptura em espaços edificados, p. 60
a
Exemplos históricos de edifícios desconexos, p. 61
b

Figura 67: Rob Krier, Architectural composition, 1988. a – Exemplos teóricos de divisão e ruptura em espaços edificados, p. 60, b – Exemplos históricos de edifícios desconexos, p. 61


Rob Krier, Architectural composition, 1988. Exemplos teóricos de fragmentos geométricos, p. 62
Figura 68: Rob Krier, Architectural composition, 1988. Exemplos teóricos de fragmentos geométricos, p. 62

Exemplos teóricos de composições aditivas, p. 63
a
Exemplos históricos de edifícios aditivos, p. 65
b

Figura 69: Rob Krier, Architectural composition, 1988. a – Exemplos teóricos de composições aditivas, p. 63, b – Exemplos históricos de edifícios aditivos, p. 65


Exemplos teóricos de composições intersecantes, p. 66
a
Exemplos históricos de edifícios compostos de interseções de elementos, p. 67
b

Figura 70: Rob Krier, Architectural composition, 1988. a – Exemplos teóricos de composições intersecantes, p. 66, b – Exemplos históricos de edifícios compostos de interseções de elementos, p. 67


Formas básicas de volumes

(a) Espaços convexos na teoria da sintaxe espacial. Desenho por Michael Batty e Sanjay Rana
Figura 71: (a) Espaços convexos na teoria da sintaxe espacial. Desenho por Michael Batty e Sanjay Rana

A unidade mínima da composição é um volume delimitado, com uma forma geométrica inteligível. Essa definição é diferente de outras teorias do espaço arquitetônico, como a sintaxe espacial (fig. 71). Para a sintaxe espacial, a unidade mínima é o espaço convexo:Hillier et al., “Space Syntax”; Batty e Rana, “The Automatic Definition and Generation of Axial Lines and Axial Maps”.

uma forma geométrica qualquer onde todos os seus pontos podem ser visto a partir de todos os outros.


A sintaxe espacial é um método de análise da arquitetura. Já a teoria da composição tradicional é um método de produção da arquitetura. Por isso, o nosso foco não é tanto na consistência matemática da definição de espaço, e sim no significado social de volumes enquanto lugares associados a diferentes expectativas culturais (fig. 72). Essas formas podem ser convexas ou não, mas sempre formam uma unidade claramente articulada.Krier, Architectural Composition.

quadrados, p. 73
a
octogonais, cruciformes e circulares, p. 75
b

Figura 72: Rob Krier, Architectural composition, 1988. Volumes interiores. a – quadrados, p. 73, b – octogonais, cruciformes e circulares, p. 75


geometrias distorcidas, sequências rítmicas e espaços retangulares, p. 74
a
sobreposição de formas básicas, p. 76
b

Figura 73: Rob Krier, Architectural composition, 1988. a – geometrias distorcidas, sequências rítmicas e espaços retangulares, p. 74, b – sobreposição de formas básicas, p. 76


Formas geométricas com ângulos ou contornos muito incomuns, como ovais, triângulos ou polígonos não retangulares são muito pouco usadas em qualquer tradição arquitetônica. Essas formas geram muito desperdício de área, já que temos cantos ou bordas difíceis de aproveitar. Além disso, elas são também pouco práticas para fazer ligações com outras formas. Onde elas podem ser bastante úteis, por outro lado, é no preenchimento de espaços residuais entre volumes mais importantes (fig. 74). Essa combinação nos mostra como uma usar a hierarquia entre volumes para priorizar a regularidade e simplicidade geométrica das salas mais importantes e acomodar as funções secundárias em formas irregulares.

espaços triangulares e formas especiais, p. 78
a
aplicações práticas de espaços aditivos e intersecantes, p. 77
b

Figura 74: Rob Krier, Architectural composition, 1988. a – espaços triangulares e formas especiais, p. 78, b – aplicações práticas de espaços aditivos e intersecantes, p. 77


Siheyuan (pátio entre 4 alas) e gong (salão central, corredor perimetral e passarela coberta de ligação): Zhou em diante

Vãos e módulos em elevação

Estudo de massas

Proporção e articulação de elevações

Proporcionar espaços

Poché e mosaico

Elementos de composição na tradição mediterrânea

Um dos aspectos mais difíceis na composição é determinar corretamente a proporção relativa de área e importância arquitetônica entre … áreas dedicadas a um uso específico e áreas necessárias simplesmente para acesso e circulação.Curtis, Architectural Composition, 67.

Vestíbulos exteriores

Vestíbulos incorporados

Circulação vertical

Escadarias monumentais quase sempre no exterior dos edifícios; pouca atenção a escadarias interiores antes do Renascimento.

Configuração das salas

Pode-se dizer que a disposição das salas numa sequência e ordem lógicas é o objeto primordial da composição arquitetônica.Curtis, 104.

Corredores e passagens

Pátios

Bibliografia

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