Tendas e cabanas

Cabanas primitivas segundo William Chambers, A Treatise on Civil Architecture, 1759
Figura 1: Cabanas primitivas segundo William Chambers, A Treatise on Civil Architecture, 1759

Nos mitos da cabana primitiva e nas culturas da maior parte do mundo, a madeira é o material primordial da arquitetura. A construção tradicional em madeira é uma concepção aditiva, isto é, ela se caracteriza estruturalmente e visualmente pela montagem de peças claramente distintas entre si. Quase todas as tradições arquitetônicas em madeira usam o que chamamos de um sistema arquitravado: vigas que trabalham à flexão, simplesmente apoiadas sobre pilares em compressão.

Neste tópico, vamos começar estabelecendo uma distinção fundamental entre duas concepções estruturais em madeira, gerando dois grandes grupos de tradições arquitravadas: os tipos da “tenda” e da “cabana”. Vamos nos concentrar sobretudo na concepção estrutural da cabana para compreender como uma construção a base de colunas e vigas pode ser montada. Na sequência, vamos ver como podemos usar este sistema arquitravado para construir pisos contínuos, sem usar nada parecido com lajes de concreto. Por fim, vamos ver como algumas dessas tradições codificam um cânone da construção arquitravada em madeira, e como esse cânone pode ser usado como ponto de partida para construções em pedra.

A madeira tem um papel central em dois dos três tipos primordiais de construção tradicional, a “tenda” e a “cabana”, enquanto o terceiro tipo, a “caverna”, é característico das construções em alvenaria ou taipa (fig. 1). Esses tipos foram definidos na segunda metade do século XVIII pelo britânico William Chambers e pelo francês Quatremère de Quincy.Chambers, A Treatise on Civil Architecture; Quatremère de Quincy, “Caractère”.

Tenda

Reconstituição dos abrigos de Terra Amata, 380.000 a.p. Foto: Véronique Pagnier, 2011
Figura 2: Reconstituição dos abrigos de Terra Amata, 380.000 a.p. Foto: Véronique Pagnier, 2011

As tendas são abrigos temporários que têm como única estrutura portante um certo número de varas apoiadas entre si. A hipótese de reconstituição dos vestígios de Terra Amata, no sudeste da França, datados de até 380 mil anos atrás (fig. 2), talvez seja o exemplo mais antigo conhecido desse tipo.

Tipi dos oglala, etnia Lakota, América do Norte. Foto: John C.H. Grabill, 1891
Figura 3: Tipi dos oglala, etnia Lakota, América do Norte. Foto: John C.H. Grabill, 1891

Várias comunidades em diferentes regiões do mundo usam tendas pelo menos durante uma parte do ano: por exemplo, o tipi da América do Norte (fig. 3) ou a iurta do norte da Ásia (fig. 4). Sociedades predominantemente sedentárias constroem tendas como abrigos de caça ou de expedições militares (fig. 5).


Vasily Vereshchagin, Tenda quirguiz no rio Chu, 1869–1870
Figura 4: Vasily Vereshchagin, Tenda quirguiz no rio Chu, 1869–1870

Barraca do corpo de Fuzileiros navais dos Estados Unidos no Afeganistão. Departamento da Defesa dos Estados Unidos, 2014
Figura 5: Barraca do corpo de Fuzileiros navais dos Estados Unidos no Afeganistão. Departamento da Defesa dos Estados Unidos, 2014

Na sua essência, a concepção estrutural da tenda é um sistema de pórticos radiais ou alinhados. A simplicidade extrema das tendas é uma vantagem em se tratando de abrigos temporários. Por outro lado, algumas tradições arquitetônicas usam tipos derivados da tenda como habitações permanentes; além das iurtas do norte da Ásia, o exemplo mais notável é o das comunidades Ma’dan no sul da Mesopotânia, mais conhecidas como os “árabes do pântano” (fig. 6).

Mudhif (morada dos Ma’dan), sul do Iraque
Figura 6: Mudhif (morada dos Ma’dan), sul do Iraque

Construção de um mudhif. Foto: Jassim Alasadi
Figura 7: Construção de um mudhif. Foto: Jassim Alasadi

Os mudhif, as moradas dos Ma’dan, são construídas com feixes de juncos em forma de arcos, revestidos com mais juncos (fig. 7). Os pórticos arqueados do mudhif são razoavelmente rígidos no seu próprio plano; os feixes de juncos do revestimento fazem o contraventamento no plano ortogonal ao dos pórticos (fig. 8).


Esquema estrutural de um mudhif
Figura 8: Esquema estrutural de um mudhif

Interior de um mudhif. Foto: Ikhlas Abbis
Figura 9: Interior de um mudhif. Foto: Ikhlas Abbis

O uso do mesmo material para a estrutura e o revestimento lembra uma versão orgânica das construções em alvenaria, mas a lógica do esqueleto estrutural, que não se diferencia em apoios verticais e elementos de cobertura distintos entre si, remete ao tipo da tenda (fig. 9).

Cabana

Em contraste com o tipo da tenda, o tipo da cabana se caracteriza por uma sequência de armações estruturais em duas dimensões (ver fig. 1). Essas armações podem ser iguais ou diferentes entre si, mas são sempre formadas por dois grupos de componentes claramente distintos: primeiro, pilares ou esteios que formam os principais apoios verticais à compressão; segundo, vigas ou barrotes que distribuem horizontalmente, ou seja, em flexão, as cargas recebidas dos assoalhos e coberturas para os apoios verticais.


Thomas Cole, Decurso do império: Estado selvagem, 1834
Figura 10: Thomas Cole, Decurso do império: Estado selvagem, 1834

Portanto, só porque tanto a tenda quanto a cabana são construídas em madeira não quer dizer que a cabana é de algum modo uma evolução ou aprimoramento da tenda. Esses tipos representam, como já disse Quatremère de Quincy no final do século XVIII, modos de vida e tradições construtivas diferentes. A maioria das sociedades que constroem tendas é nômade ou seminômade, em geral caçadores-coletores como os que estão representados na pintura de Thomas Cole intitulada O estado selvagem, parte da série sobre O decurso do império (fig. 10).


Pelo contrário, todas as sociedades que constroem cabanas, ou são totalmente sedentárias num único sítio, ou alternam numa escala sazonal entre dois sítios fixos. Essa alternância sazonal é chamada de transumância, e caracteriza muitas comunidades tradicionais em todos os continentes, por exemplo na região do Sael (fig. 11).

Padrões de transumância no Sael. OCDE, 2014
Figura 11: Padrões de transumância no Sael. OCDE, 2014

Regiões de origem da vida sedentária: centro-norte da Europa, nordeste da Ásia e Crescente fértil
Figura 12: Regiões de origem da vida sedentária: centro-norte da Europa, nordeste da Ásia e Crescente fértil

A vida transumante ou sedentária permite às comunidades investirem mais esforço em construções duráveis, e também em outras comodidades duráveis como as ferramentas de pedra polida e os recipientes em cerâmica. A adoção desses modos de vida por caçadores-coletores começou entre 25 e 15 mil anos atrás em três regiões muito distantes e diferentes entre si: as planícies do centro-norte da Europa, as florestas temperadas em volta dos mares Amarelo e do Japão, no nordeste da Ásia, e as encostas subtropicais do Crescente fértil, na Mesopotâmia (fig. 12). Algum tempo mais tarde, a vida sedentária começa a ser adotada também em várias partes do continente americano.

Reconstituição do abrigo do período Natufiano em Eynan, Israel, c. 15 a 12 mil anos atrás. Haklay e Gopher, 2015
Figura 13: Reconstituição do abrigo do período Natufiano em Eynan, Israel, c. 15 a 12 mil anos atrás. Haklay e Gopher, 2015

Desde os mais antigos vestígios de cabanas, como no sítio arqueológico de Eynan, em Israel, datado de 15 a 12 mil anos atrás (fig. 13), a concepção dessas construções é estruturada com clareza e é totalmente diferente das tendas.Haklay e Gopher, “A New Look at Shelter 131/51 in the Natufian Site of Eynan (Ain-Mallaha), Israel”.

O abrigo de Eynan se apoiava num muro de arrimo semicircular e era provavelmente coberto com um sistema de esteios fincados verticalmente no chão, que sustentavam uma cobertura de caibros. O esforço de planejamento e execução dessa construção indica que esse sítio devia ser ocupado, talvez não de modo permanente, mas pelo menos em temporadas longas.


Eynan é um sítio do período mesolítico, ou seja, da transição entre as sociedades de caçadores-coletores do paleolítico e as sociedades de agricultores e pastores do neolítico. Transição, nesse caso, não significa que encontramos tipos de abrigos de algum modo intermediários entre a tenda e a cabana; significa que a comunidade que usou esse sítio estava adotando um modo de vida sedentário, e criou um novo tipo de morada para atender a esse novo modo de vida. No abrigo de Eynan, a distinção entre os apoios verticais e os elementos apoiados — caibros inclinados, mas também frechais horizontais — é completa. Logo, esse abrigo não tem absolutamente nenhuma relação com a concepção estrutural das tendas, onde essa distinção não existe.

Culturas e populações do mesolítico inicial na Eurásia. Carlos Quiles, 2021
Figura 14: Culturas e populações do mesolítico inicial na Eurásia. Carlos Quiles, 2021

Desempenho estrutural da madeira

A construção arquitravada segundo o tipo tradicional da cabana aproveita as características do desempenho estrutural da madeira. Essas características são a alta resistência da madeira tanto à compressão quanto à flexão — sempre na direção das fibras — e a sua baixa resistência ao cisalhamento, também conhecido como esforço cortante. O esforço cortante é perpendicular às fibras da madeira e geralmente se concentra nas extremidades das vigas. Como resultado, temos, por um lado, pilares e vigas esbeltos, e por outro, soluções engenhosas para apoiar as extremidades das vigas sobre os pilares, assim como para ligar a cobertura ao sistema pilares–viga.

Forças na construção arquitravada: (a) compressão axial; (b) flexão; (c) cisalhamento
Figura 15: Forças na construção arquitravada: (a) compressão axial; (b) flexão; (c) cisalhamento

Monte Wutai, Nanchansi, salão maior, 782 d.C. Foto: Zhang Zhugang, 2013
Figura 16: Monte Wutai, Nanchansi, salão maior, 782 d.C. Foto: Zhang Zhugang, 2013

Dentre as inúmeras variações sobre o tema da construção arquitravada em madeira por todo o mundo, três tradições construtivas são especialmente interessantes para nós: o sistema altamente refinado e minuciosamente codificado da arquitetura chinesa (fig. 16), as moradas com pórtico central dos povos que vivem nas depressões do sul da bacia Amazônica (fig. 17), e as tradições de construção arquitravada no Mediterrâneo oriental.


Casa lagartixa em construção, mostrando o pórtico central. Manual de arquitetura kamayurá, 2019
Figura 17: Casa lagartixa em construção, mostrando o pórtico central. Manual de arquitetura kamayurá, 2019

Distribuição originária da tradição arquitravada dita “clássica”
Figura 18: Distribuição originária da tradição arquitravada dita “clássica”

Das três, esta última, a tradição do Mediterrâneo oriental (fig. 18), é a única que está praticamente extinta na sua forma original em madeira. Mas ela é, também, a que deixou o legado mais dominante na arquitetura dos últimos 2500 anos, um legado que foi codificado e imortalizado em pedra: a arquitetura clássica greco-romana.

Colunas e vigas

O tipo primordial da cabana se caracteriza por estruturas lineares de vigas apoiadas em pilares. Três grandes tradições de cabanas se consolidaram em diferentes partes do mundo no período de c. 1500 a.C. e 1500 d.C.: o método chinês de carpintaria estrutural, a arquitetura clássica do Mediterrâneo oriental, e a construção de casas alongadas na bacia Amazônica. Essas tradições influenciaram, por sua vez, várias outras regiões e culturas construtivas. Todas elas se originam da construção com perfis pesados de madeira e colunas feitas de troncos inteiros.

Estruturas em madeira

Figura 19: Floresta de cedros em Tannourine, Líbano. Filmagem: Çağatay Erciyes, 2017

A possibilidade, ou a necessidade, de usar troncos de tamanhos específicos determinava as dimensões, mas também as proporções das colunas: mais esbeltas onde se usavam árvores mais finas, como pinheiros; mais grossas quando se tinha cedro ou carvalho à disposição. O uso descontrolado da madeira de cedro, sobretudo proveniente do Líbano (fig. 19), e de outras essências, primeiro para a construção civil e mais adiante para a construção naval, foi uma das principais causas de desmatamento na região do Crescente fértil e na Grécia ainda na Antiguidade; esse desmatamento pode até mesmo ter alterado o clima na região, com consequências que se prolongam até hoje.


Algumas construções monumentais muito antigas usavam pilares feitos de grandes troncos de árvores diretamente fincados no chão. Talvez fosse o caso da estrutura de madeira que fazia parte do monumento megalítico de Stonehenge. No Japão atual, a arquitetura do santuário de Ise afeta essa solução arcaizante (fig. 20); o santuário é reconstruído a cada 20 anos desde o século VII d.C. seguindo a mesma técnica.Watanabe, Shinto Art.

Pavilhão principal do recinto interior, santuário de Ise, Japão, última reconstrução em 2013. Foto: Ise Jingū
Figura 20: Pavilhão principal do recinto interior, santuário de Ise, Japão, última reconstrução em 2013. Foto: Ise Jingū

’Ok eté kamayurá. Manual de arquitetura kamayurá, 2019
Figura 21: ’Ok eté kamayurá. Manual de arquitetura kamayurá, 2019

A tradição amazônica, atestada pelo menos desde o século XIII, usa uma colunata central que sustenta diretamente a viga de cumeeira. Os tipos de ’ok kamayurá (fig. 21) são os tipos mais consolidados e bem documentados que persistem até hoje.Kamayurá (povo), Manual da arquitetura kamayurá.

Nessas construções, os elementos estruturais são muito esbeltos porque são feitos em madeira de lei da Amazônia.


Os esteios são engastados no chão e a viga de cumeeira é amarrada nos esteios. Isso dá uma boa rigidez para o pórtico inteiro, e na casa do tipo “gafanhoto”, também são usados contraventamentos diagonais (fig. 22).

Esquema construtivo do tipo de casa “gafanhoto” kamayurá. Manual de arquitetura kamayurá, 2019
Figura 22: Esquema construtivo do tipo de casa “gafanhoto” kamayurá. Manual de arquitetura kamayurá, 2019

Tripartição

Coluna coríntia do templo de Vesta em Tivoli, século II d.C. Desenho: Anton Grain
Figura 23: Coluna coríntia do templo de Vesta em Tivoli, século II d.C. Desenho: Anton Grain

O cérebro humano é propenso a dividir e agrupar as coisas para melhor compreender e organizar o mundo à sua volta. Em todas as culturas tradicionais, as edificações — pelo menos as mais importantes — vão ser divididas em duas metades iguais pela simetria da fachada. Muitas tradições construtivas vão além e dividem verticalmente as edificações, ou partes delas, em três partes: uma parte inferior, uma intermediária, e uma parte superior.

A coluna clássica é um dos exemplos mais simples dessa regra. É um objeto com pelo menos dois planos verticais de simetria e que se divide verticalmente em base, fuste e capitel. O próprio capitel, por sua vez, é composto, de baixo para cima, por um astrágalo ou colarinho que separa o capitel do fuste, um corpo principal que varia segundo a ordem, e um ábaco no topo, em contato com a arquitrave ou viga (fig. 23).


Bases

Os troncos fincados diretamente no chão apodrecem com facilidade. Isso não é um problema em casos como o das povoações amazônicas, onde a vida útil das construções é de algumas décadas. Em construções concebidas para durar séculos em vez de décadas, isso passa a ser um problema. Nesses casos, é mais comum estabelecer uma fundação ligeiramente elevada com respeito à cota do terreno. Já vimos antes como fazer fundações cavando valas e, se necessário, cravando estacas antes de construir os alicerces.

A plataforma sobre a qual vamos levantar as colunatas raramente está no nível natural do terreno; na construção arquitravada, ela é quase sempre soerguida — seja num pódio, como é o caso da arquitetura persa e na Itália, seja sobre alguns degraus, como na Grécia (fig. 24). O pódio pertence mais propriamente à construção murária, da qual vamos tratar na próxima seção; já o krepidoma ou degraus vai merecer um tratamento mais detalhado junto com o sistema formal das ordens clássicas greco-romanas. Essa elevação não só protege o edifício contra a umidade ascendente, como já vimos na aula sobre fundações, mas também dá um efeito de monumentalidade.

Figura 24: Krepidoma do templo de Ártemis, Sardis (Lídia), iniciado 300 a.C., alterado séc. II d.C.

Colunas em madeira sobre bases em pedra, salão do Darma, Kenninji, Quioto, 1765. Foto: Blanco Teko, 2011
Figura 25: Colunas em madeira sobre bases em pedra, salão do Darma, Kenninji, Quioto, 1765. Foto: Blanco Teko, 2011

Por mais que o estilóbata esteja elevado acima do terreno à sua volta, as colunas ainda têm quase sempre uma base em pedra (fig. 25). Essa base, um pouco mais larga do que o próprio fuste da coluna, evita que a madeira entre em contato com qualquer poça d’água que tivesse acumulado no estilóbata, e também ajudava a regularizar o assentamento da coluna sobre o piso. Outra utilidade da base é manter pessoas, objetos e veículos afastados do fuste da coluna, evitando danos à parte mais crítica da estrutura.

Capitéis


Arquétipo em madeira da ordem toscana, segundo Chipiez, 1876
Figura 26: Arquétipo em madeira da ordem toscana, segundo Chipiez, 1876

Do mesmo modo, o topo da coluna não encosta diretamente na viga, mas é coroado com um capitel. Diferentes formas de capitéis correspondem a diferentes necessidades estruturais: mãos lineares para um lado ou para o outro ajudam a conter o cisalhamento nas extremidades das vigas (fig. 26); capitéis quadrados, como na ordem dórica, servem simplesmente para regularizar o contato entre a coluna e a arquitrave (fig. 28); e capitéis em forma de U, como os de Persépolis (fig. 27), evitam o deslizamento das vigas para os lados, além de facilitar a sobreposição de vigas perpendiculares entre si.



Capitel do apadana de Dario I em Susa, início do séc. V a.C., reconstituído no museu do Louvre com vigas segundo Marcel Dieulafoy, 1890. Foto: R. Mashhadi, 2007
Figura 27: Capitel do apadana de Dario I em Susa, início do séc. V a.C., reconstituído no museu do Louvre com vigas segundo Marcel Dieulafoy, 1890. Foto: R. Mashhadi, 2007

Figura 28: Templo dórico em Segesta, Sicília, final do século V a.C.

Construção aditiva

A construção arquitravada é aditiva por natureza. Ela se compõe da montagem de elementos claramente distintos entre si, relativamente grandes na escala da edificação como um todo, e encaixados ou apoiados uns sobre os outros. Essa montagem tende a produzir um sistema espacial modular a partir das dimensões dos principais elementos da arquitetura — as colunas e os vãos entre elas, definidos pelas arquitraves.

Construir com elementos modulares é uma prática especialmente vantajosa na arquitetura em madeira. Isso é o caso porque o ciclo de produção das colunas e vigas em madeira é relativamente longo e distante do canteiro de obra: os perfis serrados precisam secar durante vários meses, até dois anos dependendo do clima, e demandam uma área espaçosa para isso. Essa distância física e temporal entre o corte das árvores e a construção do edifício favorece a padronização das medidas de pilares e vigas.

No Yingzao fashi, uma compilação de regras para a construção editada pelo arquiteto chinês Li Jie no final do século XI d.C., há oito classes hierárquicas de construção que correspondem a outros tantos módulos de seção e comprimento das vigas, das colunas e dos elementos acessórios.Liang, A Pictorial History of Chinese Architecture.

Essa regra continuou em vigor e foi reeditada várias vezes na China até a segunda metade do século XVIII. Na prancha ilustrada pelo historiador da arquitetura Liang Sicheng, no século XX, as dimensões padrão de vigas em cada uma das oito classes ficam bem evidentes (fig. 29). O resultado são edifícios também modulares, com tramos estruturais que seguem dimensões e proporções padronizadas.


Regras de carpintaria segundo o Yingzao fashi, século XI, traduzidas e ilustradas por Liang Sicheng no século XX
Figura 29: Regras de carpintaria segundo o Yingzao fashi, século XI, traduzidas e ilustradas por Liang Sicheng no século XX

Modularidade

Outros sistemas seguem uma lógica mais simples. No stick framing, o modo norte-americano de construir com madeira serrada, os perfis são sempre leves o suficiente para serem carregados e montados por equipes pequenas de carpinteiros. As dimensões são altamente padronizadas em medidas nominais, e o desempenho estrutural das armações de esteios e barrotes é bem conhecido.

A modularidade tem um papel importante na padronização de concepções estruturais e de dimensionamento da construção, mas além disso ela pode, ou não, ser explorada como um instrumento de articulação arquitetônica. No caso da carpintaria norte-americana, essa modularidade simplesmente estabelece espessuras padrão de paredes e limites práticos para o tamanho das peças na arquitetura residencial. Já em sistemas que usam elementos de grande porte, como a carpintaria chinesa ou europeia, os módulos são mais determinantes para a proporção geral da construção, mas também podem ser manipulados e ajustados a condições específicas.

Especialmente comuns são a diminuição de amplitude dos vãos do centro para as extremidades, e a diminuição de altura dos níveis da base para o topo. Outra possibilidade é o uso de tramos alternados.

Uma das variações mais frequentes em várias tradições de construção arquitravada é aumentar a amplitude do vão central e reduzi-la nas extremidades da colunata. Esse ajuste está previsto no Yingzao fashi e é um dos assim chamados “refinamentos ópticos” (fig. 30) bem conhecidos na arquitetura clássica greco-romana. Talvez essa prática se origine de uma percepção intuitiva de que os cantos da construção precisam ter uma estrutura reforçada, seja para contraventamento, seja por causa do assentamento das fundações. Em qualquer caso, ela transmite um senso visual de estabilidade e equilíbrio que é quase tão importante para a firmitas vitruviana quanto a solidez efetiva da construção.

Figura 30: Palácio na cidade Proibida de Pequim mostrando refinamento óptico dos vãos estruturais

Assoalhos e terraços

Assoalhos simples

Estamos pouco a pouco subindo uma estrutura de uma cabana simples. No tópico anterior, resolvemos as fundações e um terrapleno para servir como piso térreo. Logo acima, levantamos as colunas e as vigas sobre essas colunas. Agora, temos que fechar um piso ou teto sobre essas vigas.


Corrosão da armadura e perda de cobrimento em laje de concreto armado. Foto: Marcos Felix, Artam Engenharia, 2010
Figura 31: Corrosão da armadura e perda de cobrimento em laje de concreto armado. Foto: Marcos Felix, Artam Engenharia, 2010

Na construção moderna, o método mais comum para se preencher esse piso é lançar uma laje em concreto armado, mas essa não é uma opção na arquitetura tradicional. Na verdade, a laje é um dos componentes mais frágeis da construção moderna: primeiro, porque ela é dimensionada para uma previsão específica de carregamento que pode não ser respeitada ao longo da vida útil do edifício e das mudanças de uso pelas quais ele pode passar; segundo, porque a laje é muito suscetível a defeitos de cobrimento durante a execução, e depois a infiltrações durante a vida útil, o que pode causar exposição e corrosão da armadura (fig. 31).


Por isso, além de não existir nenhum sistema construtivo tradicional diretamente equivalente à laje de concreto armado, o próprio princípio de funcionamento da laje moderna é indesejável no contexto da arquitetura tradicional. Em vez disso, preferimos construir pisos com estruturas a compressão pura (vamos ver em outro tópico mais adiante como isso é possível) ou então aproveitar o desempenho da madeira à flexão.


Esquema de um assoalho e terraço tradicional segundo Wright, Ancient Building Technology. 1 – vigas de madeira serrada, 2 – barroteamento de toras, 3 – ripado de taquara, 4 – vedação de esteira, 5 – terrapleno de barro, 6 – reboco de argila ou argamassa de cal
Figura 32: Esquema de um assoalho e terraço tradicional segundo Wright, Ancient Building Technology. 1 – vigas de madeira serrada, 2 – barroteamento de toras, 3 – ripado de taquara, 4 – vedação de esteira, 5 – terrapleno de barro, 6 – reboco de argila ou argamassa de cal

A construção de pisos tradicionais em madeira consiste, portanto, em preencher uma superfície contínua usando elementos de dimensões finitas — vigas, barrotes e ripados ou tábuas (fig. 32).


A montagem de um assoalho tradicional pode funcionar tanto como o piso de um pavimento quanto como o teto do pavimento abaixo (fig. 33).

Isométrica seccionada de uma sepultura em Cnossos, Creta, Idade do Bronze tardia, segundo Wright, Ancient Building Technology. 1 – arquitrave em madeira serrada, 2 – barrotes em madeira serrada, 3 – ripado de toras, 4 – contrapiso de barro com cal
Figura 33: Isométrica seccionada de uma sepultura em Cnossos, Creta, Idade do Bronze tardia, segundo Wright, Ancient Building Technology. 1 – arquitrave em madeira serrada, 2 – barrotes em madeira serrada, 3 – ripado de toras, 4 – contrapiso de barro com cal

Conexões na carpintaria estrutural da Roma antiga, segundo Jean-Pierre Adam
Figura 34: Conexões na carpintaria estrutural da Roma antiga, segundo Jean-Pierre Adam

A combinação de elementos construtivos para fazer esse assoalho, além de ser uma competência estrutural bastante desenvolvida em todas as culturas (fig. 34), é um dos recursos mais interessantes de expressão plástica nos ambientes interiores da arquitetura.

Contraventamento

Num sistema arquitravado puro, por assim dizer, como nas tradições clássica e chinesa, as colunas são simplesmente apoiadas sobre as suas bases, e as arquitraves são apoiadas sobre as colunas. Já vimos que esses sistemas são bastante resistentes a cargas verticais (ver fig. 15), e agora vamos ver como torná-los resistentes também a esforços horizontais como o vento, terremotos (fig. 35), ou mesmo a simples irregularidade de distribuição das cargas. Para isso, vamos combinar diferentes sistemas portantes com elementos da construção de assoalhos, que conectam e travam esses sistemas entre si.

Figura 35: Comportamento estrutural de um pagode japonês num terremoto. Vídeo: Science Channel, 2016.


Diagrama dos sistemas construtivos de uma célula em Çatal Höyük, c. 6500 a.C.
Figura 36: Diagrama dos sistemas construtivos de uma célula em Çatal Höyük, c. 6500 a.C.

A forma mais simples de contraventamento estrutural possível é construir um terraço rígido cobrindo a edificação. Na aldeia neolítica de Çatal Höyük, no sul da Anatólia, esse sistema é formado por uma sobreposição de vigas mestras (arquitraves), barrotes, uma manta de vime e um terrapleno espesso em terra batida, revestido com cal (fig. 36). Além disso, os esteios em madeira também são contraventados diretamente pelas paredes em blocos de adobe.

Como contraventar

Uma característica importante do sistema arquitravado do Mediterrâneo oriental é que ele não tem nenhuma forma de contraventamento intrínseca à sua concepção estrutural. Todos os elementos construtivos, das bases das colunas aos barrotes, são simplesmente apoiados uns sobre os outros sem nenhum travamento substancial. Nenhum elemento diagonal vem dar rigidez à montagem de peças verticais e horizontais. Um esqueleto relativamente leve em madeira sem contraventamento é uma construção muito frágil; qualquer carga horizontal, como nos terremotos que são bastante frequentes na região, derruba o edifício como se fosse uma torre de Jenga. Mesmo algum assentamento diferencial nas fundações poderia pôr em risco a estabilidade da construção.

Duas soluções conjuntas resolvem o problema do contraventamento na construção arquitravada do Mediterrâneo oriental:

  1. Redundância estrutural

  2. Núcleo rígido

Redundância estrutural

A primeira solução é uma certa redundância no dimensionamento da estrutura.

Essa redundância não é só uma margem de segurança no perfil de cada elemento tomado individualmente — o diâmetro das colunas ou a seção das arquitraves e dos barrotes. Ainda assim, essa margem de segurança existe e não é pequena. A gama de proporções canônicas das ordens clássicas gregas, ou mesmo a das colunas persas, é um tanto conservadora (compare figs. 55, 56).


Colunata do fórum de Pompeia, corte transversal segundo Jean-Pierre Adam
Figura 37: Colunata do fórum de Pompeia, corte transversal segundo Jean-Pierre Adam

Uma parte disso tem a ver com a transposição de materiais da madeira para a pedra, ou com a combinação de elementos em madeira e pedra na arquitetura grega e romana (fig. 37). Não é possível fazer conexões rígidas entre elementos de madeira e de pedra, só encaixes simplesmente apoiados. Por isso, todo o contraventamento possível nessas construções se deve ao excesso de seção estrutural em cada elemento.


Essa transposição já tinha sido feita por completo no Egito antigo, sobretudo devido à falta de madeira naquela região. O resultado são as famosas estruturas superdimensionadas, com vãos pequenos por causa da fraca resistência à flexão das lajes em granito (fig. 38).

Salão principal do templo em Karnak, isométrica seccionada por Perrot e Chipiez
Figura 38: Salão principal do templo em Karnak, isométrica seccionada por Perrot e Chipiez


Arquitraves de templos da Grécia arcaica e clássica. Josef Durm, 1910
Figura 39: Arquitraves de templos da Grécia arcaica e clássica. Josef Durm, 1910

A redundância vai além das dimensões das colunas: na arquitetura grega, as arquitraves costumam ser duplicadas ou mesmo triplicadas em profundidade, agregando mais um nível de redundância (fig. 39). Outra forma de redundância estrutural está nos vãos: os intercolúnios (a distância entre os eixos das colunas) são bastante estreitos, e as proporções das colunatas egípcias, persas e gregas são muito verticalizadas (fig. 55).

Colunatas e paredes

Além da redundância no dimensionamento da estrutura arquitravada, as tradições do Mediterrâneo oriental também usam elementos de contraventamento no sentido mais estrito. Os principais são as paredes em alvenaria que geralmente estão associadas à estrutura arquitravada. Um dos exemplos mais antigos e literais desse método é o chamado heroön, ou túmulo do herói, em Lefkandi, construído na Grécia no século X a.C. (fig. 40).

Nessa construção, temos duas colunatas em madeira com as suas arquitraves — um períptero, ou ala que contorna o exterior da edificação, e uma colunata no eixo longitudinal, sustentando a viga de cumeeira. Além de as colunas estarem engastadas no solo, ambas as colunatas são ligadas por vigas secundárias a uma parede de adobe com fundações em pedra lavrada (fig. 41).

Axonométrica do túmulo dito heroön (tumba do herói), Lefkandi, Grécia, século X a.C.
Figura 40: Axonométrica do túmulo dito heroön (tumba do herói), Lefkandi, Grécia, século X a.C.

Corte transversal do heroön de Lefkandi
Figura 41: Corte transversal do heroön de Lefkandi

Perspectiva analítica do templo de Afaia em Egina, século V a.C., segundo Lawrence
Figura 42: Perspectiva analítica do templo de Afaia em Egina, século V a.C., segundo Lawrence

O tipo construtivo do túmulo de Lefkandi é uma dentre muitas variações sobre o tema da combinação de colunatas em madeira com paredes em alvenaria que foram exploradas na Grécia do período geométrico, entre os séculos X e VIII a.C. Essas variações acabaram se consolidando em dois tipos predominantes que, a partir do final do século VII, deram origem às duas primeiras ordens clássicas em pedra: a dórica (fig. 42) e a jônica. Mais adiante vamos nos debruçar em detalhe sobre essas ordens, e sobre as adaptações graduais que o uso da pedra como material de construção implica.

Contraventamento por assoalho rígido

Proporção modular das colunatas no mausoléu de Dario I, século [V] a.C. Choisy, 1899
Figura 43: Proporção modular das colunatas no mausoléu de Dario I, século [V] a.C. Choisy, 1899

Na arquitetura monumental da Pérsia antiga, o método de contraventamento é diferente. Encontramos grandes salões hipostilos — ou seja, pontuados por uma malha bastante cerrada de colunas (fig. 43) — onde as paredes contornam o perímetro do salão.


Nesse caso, as paredes perimetrais sozinhas não resolvem o problema do contraventamento (fig. 44). Em vez disso, todo o espaço do apadana (esse é o nome que se dá ao salão dos palácios persas) é coberto por um terraço rígido.

Disposição das colunatas no apadana de Artaxerxes em Susa, século V a.C. Choisy, 1899
Figura 44: Disposição das colunatas no apadana de Artaxerxes em Susa, século V a.C. Choisy, 1899

Esse terraço tem uma construção complexa, como todo assoalho horizontal na arquitetura tradicional. A estrutura do terraço começa com o sistema de vigas mestras e secundárias: as primeiras encaixadas no vão dos capitéis, as segundas apoiadas sobre o topo dos capitéis. Sobre as vigas, temos um sistema de barrotes muito próximos uns dos outros que sustenta um assoalho de tábuas. Esse primeiro assoalho serve de teto para o apadana; sobre ele ainda temos um terrapleno com um metro de espessura, que oferece estabilidade e isolamento térmico para o sistema da cobertura. A cobertura se completa com uma espécie de sótão e mais uma sequência de assoalhos e terraplenos; o terraço é finalmente revestido com lajes de pedra e tem uma platibanda de acabamento com tijolos vitrificados (fig. 45).

A montagem rebuscada desse terraço chama a nossa atenção para uma característica importante que diz respeito à forma das construções arquitravadas.

Reconstituição dos terraços de Persépolis. Chipiez, 1876
Figura 45: Reconstituição dos terraços de Persépolis. Chipiez, 1876

Contraventamento por pórticos

Fu Xinian, sistema de pórticos longitudinais no tingtang da dinastia Song
Figura 46: Fu Xinian, sistema de pórticos longitudinais no tingtang da dinastia Song

Na arquitetura chinesa, a estratégia de contraventamento é diferente.Fu, Traditional Chinese Architecture.

O sistema estrutural chinês é formado por pórticos planos dispostos na menor direção da construção (fig. 46). Esses pórticos são formados por vigas e caibros apoiados sobre as colunas, sem contraventamento interno.


Evolução das “arquitraves” de contraventamento na arquitetura chinesa, segundo Liang e Lin
Figura 47: Evolução das “arquitraves” de contraventamento na arquitetura chinesa, segundo Liang e Lin

Então, a solução adotada na China vai ser contraventar os pórticos entre si, por meio de traves de madeira engastadas logo abaixo do topo dos fustes (fig. 47). Essas arquitraves têm dimensões modulares segundo a categoria da edificação, e além de estarem engastadas nas colunas, também são fixadas umas nas outras no ponto de encaixe.Liang, A Pictorial History of Chinese Architecture.


A partir do século XIII, também se introduz contraventamento na direção dos pórticos, pelo menos nos seus tramos exteriores. O resultado é um esqueleto contraventado em dois planos, muito mais estável (fig. 48).


Fu Xinian, dois sistemas de composições arquitravadas: diantang das dinastias Tang e Song e salão oficial da dinastia Ming
Figura 48: Fu Xinian, dois sistemas de composições arquitravadas: diantang das dinastias Tang e Song e salão oficial da dinastia Ming

Arquitetura clássica

Figura 49: Ruínas da acrópole de Atenas

A arquitetura clássica é, em última análise, a razão de ser dos mitos sobre a cabana primitiva que vimos antes. Por isso, não é de surpreender que esses mitos favoreçam a tradição da Grécia antiga (fig. 49) como descendente privilegiada da construção arquitravada em madeira, na sua versão primordial imaginária.

A alegoria iluminista contada por Laugier na metade do século XVIIILaugier, Essai sur l’architecture.

é explícita em associar a invenção racional da cabana primitiva com a pretensão de superioridade da arquitetura clássica e neoclássica (fig. 50).

Charles Eisen, desenhista e gravurista, alegoria da cabana primitiva para a 2.ª edição do Essai sur l’architecture de Marc-Antoine Laugier, 1755
Figura 50: Charles Eisen, desenhista e gravurista, alegoria da cabana primitiva para a 2.ª edição do Essai sur l’architecture de Marc-Antoine Laugier, 1755

Reconstituição [incorreta] de um entablamento dórico hipotético em madeira segundo Josef Durm, 1910
Figura 51: Reconstituição [incorreta] de um entablamento dórico hipotético em madeira segundo Josef Durm, 1910

É por isso que muitos autores desde a época de Laugier até meados do século XX insistiam em reconstituir um estágio mais primitivo da arquitetura clássica que se aproximasse do paradigma da cabana em madeira, como o fez Josef Durm (fig. 51). Esse estágio hipotético garantia um certo pedigree racionalista para uma arquitetura que, na Idade Contemporânea, vinha sofrendo a pecha de ser considerada uma mera convenção decorativa.

No entanto, como vamos ver, essa hipótese de regressão da arquitetura clássica diretamente à cabana primitiva foi refutada pelo conhecimento arqueológico mais recente. Isso não quer dizer que a tradição clássica seja um sistema decorativo arbitrário. Na verdade, a construção arquitravada a que chamamos clássica descende, sim, de uma tradição de construções vernaculares em madeira. Só que essa tradição está muito longe da pretensa universalidade e originalidade da cabana primitiva tal como concebida por Laugier ou por Chambers.

Tradição arquitravada do Mediterrâneo oriental

Região de origem da construção arquitravada “clássica”
Figura 52: Região de origem da construção arquitravada “clássica”

O que se entende por arquitetura clássica é na verdade o resultado altamente regrado de 2.500 anos de desenvolvimento duma certa tradição regional de construções arquitravadas em madeira que, na Antiguidade, se estendia desde a Pérsia até a península Itálica, passando pela Anatólia e pela Grécia (fig. 52).


William Chambers, tipo da cabana primitiva, 1759
Figura 53: William Chambers, tipo da cabana primitiva, 1759

A partir do final da Idade do Bronze, por volta do século XIII a.C., essas regiões vão consolidando certos modos de construir com colunas e vigas em madeira, geralmente associadas a paredes de vedação em alvenaria. Essa definição vai ser associada ao paradigma da cabana primitiva proposto por William Chambers em 1759 (fig. 53). A construção arquitravada do Mediterrâneo oriental se origina desse tipo de cabana com esteios em madeira apoiados sobre bases em pedra, e vigas em madeira apoiadas sobre os esteios. A particularidade da tradição mediterrânea é que nenhuma dessas ligações é engastada ou rígida: as peças feitas de troncos grossos, serrados ou não, são simplesmente apoiadas umas sobre as outras.


Charlez Chipiez (1835–1901), Retrato oficial da Academia de Arquitetura da França
Figura 54: Charlez Chipiez (1835–1901), Retrato oficial da Academia de Arquitetura da França

O arquiteto e professor francês Charles Chipiez (fig. 54) viajou na segunda metade do século XIX pela Pérsia, Egito, Mesopotâmia e Anatólia para tentar reconstituir a origem dessa tradição. Ele aplicou um método arqueológico e etnográfico moderno ao mesmo problema sobre o qual tinham se debruçado Vitrúvio, Laugier e Semper: explicar a origem da arquitetura clássica greco-romana por meio de alguma forma de cabana primitiva.


Em 1876, Chipiez publicou um livro intitulado História crítica das origens e da formação das ordens gregas.Chipiez, Histoire critique des origines et de la formation des ordres grecs.

Além de discutir exemplos canônicos da arquitetura monumental do antigo Oriente Médio (fig. 55), Chipiez documentou algumas cabanas rústicas contemporâneas no interior da Anatólia, na Turquia.

“Ordens” de colunas egípcias, persas e jônicas gregas. Chipiez, 1876. Sem escala
Figura 55: “Ordens” de colunas egípcias, persas e jônicas gregas. Chipiez, 1876. Sem escala

Cabana vernácula na Anatólia com colunata dianteira. Chipiez, 1876
Figura 56: Cabana vernácula na Anatólia com colunata dianteira. Chipiez, 1876

O modelo interpretativo proposto por Chipiez reporta as origens da tradição arquitravada do Mediterrâneo oriental a esses tipos de cabanas que subsistiam ainda, no século XIX, na Anatólia (fig. 56). Na verdade, a evidência arqueológica não nos permite dizer se essas cabanas do século XIX eram iguais ou mesmo parecidas com as formas mais primitivas de cabanas em madeira no Mediterrâneo oriental como um todo.

Mesmo que a evidência histórica dessa genealogia seja frágil, para dizer o mínimo, ela é relevante do ponto de vista da lógica de montagem da construção arquitravada. O modelo de Chipiez era um esforço sistemático para integrar todas as tradições arquitravadas da região.

As cabanas documentadas por Chipiez demonstram uma aplicação consistente de um sistema de colunas com base, fuste e capitel, acompanhadas de um entablamento com vigas mestras ou arquitraves (daí o nome desse sistema), barrotes e platibandas (fig. 57). Não importa se essas cabanas representam a origem ou uma variação em torno do tema da arquitetura clássica: elas demonstram a existência de uma tradição geograficamente difundida e resiliente ao longo de pelo menos três milênios.


Cabana vernácula na Anatólia com colunata perimetral, segundo Chipiez, 1876
Figura 57: Cabana vernácula na Anatólia com colunata perimetral, segundo Chipiez, 1876

As cabanas de Chipiez também demonstram as proporções limite para estruturas com grandes peças de madeira: 1:15 para as colunas e 1:10 para as vigas. É claro que o cálculo estrutural moderno permite um dimensionamento mais preciso de cada elemento, mas essas proporções são limites práticos e seguros no conhecimento empírico da construção tradicional.


Uma versão do sistema mediterrâneo usando troncos de madeira mais robustos foi experimentada no mundo grego durante a Idade do Bronze. Entre 1500 e 1300 a.C., os palácios minoicos e heládicos usavam fustes invertidos apoiados sobre bases. Essa forma talvez remetesse a um uso primitivo de troncos fincados no chão pela ponta mais estreita. Em qualquer caso, eles foram um estilo muito característico de palácios como Cnossos (fig. 58).

Fustes invertidos das colunas no palácio de Cnossos, c. 1650 a.C., em reconstituição de Arthur Evans, 1922. Foto: Olaf Tausch, 2016
Figura 58: Fustes invertidos das colunas no palácio de Cnossos, c. 1650 a.C., em reconstituição de Arthur Evans, 1922. Foto: Olaf Tausch, 2016

A proposta de Chipiez e DurmChipiez, Histoire critique des origines et de la formation des ordres grecs; Durm, Die Baukunst der Griechen; Durm, Die Baukunst der Etrusker. Die Baukunst der Römer.

postula um sistema que é, na verdade, uma regressão conceitual a partir da arquitetura etrusca e grega dos períodos arcaico e clássico, nos séculos VI a IV a.C. Só que essa proposta é uma regressão conceitual a partir da construção em pedra, buscando reconstituir um estado originário ideal em madeira. Desse ponto de vista, o modelo de Durm não é muito diferente do mito da cabana primitiva proposto por Laugier quase 150 anos antes (ver fig. 50), apesar de ser um pouco mais fundamentada em estudos de campo.


Banister Fletcher, árvore da arquitetura, em A History of Architecture on the Comparative Method, 15.ª ed. (1950)
Figura 59: Banister Fletcher, árvore da arquitetura, em A History of Architecture on the Comparative Method, 15.ª ed. (1950)

A precedência da tradição grega nas histórias gerais da arquitetura é tão forte e tão pouco questionada que ela acaba sendo vista como um tronco totalmente autônomo, por exemplo na famosa “árvore da arquitetura” esquematizada por Banister Fletcher da terceira edição do seu livro-texto em diante (fig. 59). O milagre grego da arquitetura clássica é quase tão universalmente aceito, e quase tão estereotipado, quanto o milagre da filosofia grega.

O cânone da arquitetura clássica se consolidou e se difundiu porque ele se tornou a base do sistema arquitetônico romano e, a partir daí, da Europa medieval e renascentista. Consequentemente, a arquitetura erudita do Brasil desde o período colonial se baseia no sistema das ordens clássicas. Vamos aqui recolocar esta particularidade no seu devido lugar: a arquitetura clássica é importante para nós enquanto brasileiros cuja cultura descende, mesmo que por imposição colonial, dessa linhagem. Mas ela não é o paradigma universal e único da “boa arquitetura”, como os manuais do século passado defendiam. Historicamente, a arquitetura grega é apenas uma parte pequena e especialmente regrada da grande tradição arquitravada do Mediterrâneo oriental.


Êntase e contratura

A tradição arquitravada do Mediterrâneo oriental geralmente combina um sistema de colunas em madeira com paredes em alvenaria, que servem de divisórias no espaço mas também costumam ter função estrutural (fig. 56). As colunas propriamente ditas são, na sua origem, troncos de árvores.


Contratura de colunas segundo Vitrúvio e Alberti, diagrama por Vila Domini, 2003
Figura 60: Contratura de colunas segundo Vitrúvio e Alberti, diagrama por Vila Domini, 2003

Por causa do uso de troncos nas origens dessa tradição, as colunas têm uma contratura elegante, onde o diâmetro superior é ligeiramente menor do que o diâmetro inferior. Vitrúvio indicava contrair o topo do fuste para algo entre ⁵⁄₆ e ⁸⁄₉ do diâmetro no extremo inferior do fuste.Vitrúvio, Tratado de arquitetura; Domini, “The Diminution of the Classical Column”.

Essa contratura dependia das dimensões absolutas das colunas (fig. 60).


Essa contratura é feita com um perfil em curva suave, chamado de êntase. Por volta do ano 300 a.C., os pedreiros do templo de Apolo em Dídima, na Grécia, usavam um diagrama que mostra o método de construção geométrica dessa curva, numa escala distorcida verticalmente.Wright, Ancient Building Technology.

A diferença de escala entre os eixos vertical e horizontal era pela praticidade de se tirar medidas a partir desse diagrama (fig. 61).

Diagrama de êntase das colunas no canteiro do templo de Apolo em Dídima, c. 300 a.C., reproduzido em Wright, Ancient Building Technology. 1 – topo do fuste, 2 – eixo da coluna, 3 – moldura da base.
Figura 61: Diagrama de êntase das colunas no canteiro do templo de Apolo em Dídima, c. 300 a.C., reproduzido em Wright, Ancient Building Technology. 1 – topo do fuste, 2 – eixo da coluna, 3 – moldura da base.

Antes da descoberta do canteiro de Dídima pelos arqueólogos do século XX, esse método já tinha sido intuído pelo arquiteto italiano Fra Giocondo no século XVI (fig. 62).

Esquema da êntase de uma coluna clássica, na edição do tratado de Vitrúvio por Fra Giocondo, século XVI (redesenhado no século XX)
Figura 62: Esquema da êntase de uma coluna clássica, na edição do tratado de Vitrúvio por Fra Giocondo, século XVI (redesenhado no século XX)


Diminuição das ordens

É pelo mesmo motivo da estabilidade estrutural e visual que se costuma reduzir a altura dos níveis sucessivos da estrutura, da base até o topo. A diminuição proporcional da estrutura visível não implica necessariamente disciplinar as alturas dos pavimentos por trás da fachada. Às vezes, como no complexo termal romano de Sardis, os níveis sobrepostos são apenas um expediente de articulação da fachada num edifício que tem um pavimento único (fig. 63).

Figura 63: Termas e palestra (ginásio) romanos de Sardis, Lídia, final do séc. II d.C.

Construção em pedra

Auguste Choisy (1841–1909) fotografado por Eugène Pirou, 1904
Figura 64: Auguste Choisy (1841–1909) fotografado por Eugène Pirou, 1904

A construção arquitravada em pedra não deve ser vista como um progresso sobre a construção em madeira; edifícios monumentais em pedra podem ser tão ou mais antigos quanto outros edifícios monumentais em madeira. A diferença, como notou o historiador da arquitetura francês Auguste Choisy (fig. 64) no final do século XIX, pode ter tanto a ver com a disponibilidade de materiais quanto com um desejo de fazer construções mais duráveis.Choisy, Histoire de l’architecture.

É o caso do Egito antigo, onde a madeira de qualidade para construir era muito escassa, em geral reservada para a construção naval e mesmo assim importada.


Pilares e lajes em pedra no Egito antigo. Choisy, 1899
Figura 65: Pilares e lajes em pedra no Egito antigo. Choisy, 1899

As principais diferenças entre a construção com madeira e com pedra dizem respeito à baixa resistência da pedra à flexão. Isso implica que as construções em pedra não podem ter praticamente nenhum balanço estrutural (fig. 65).


Arquitrave do templo de Zeus Olímpico, Atenas, século II d.C. Josef Durm, 1910
Figura 66: Arquitrave do templo de Zeus Olímpico, Atenas, século II d.C. Josef Durm, 1910

Como os elementos estruturais não podem estar em balanço, as arquitraves precisam sempre ter as suas extremidades dentro da projeção vertical das colunas que as sustentam. Essa condição foi minuciosamente documentada com respeito aos templos da Grécia clássica pelo historiador da arquitetura alemão Josef Durm (fig. 66).

Já vimos que a reconstituição da ordem dórica em madeira proposta por Durm é incorreta, isto é, o protótipo de uma cabana dórica inteiramente em madeira nunca existiu na realidade. Mesmo assim, os livros de Durm são manuais de construção tradicional exaustivos, usando como base as tradições da Grécia clássica e dos etruscos.Durm, Die Baukunst der Griechen; Durm, Die Baukunst der Etrusker. Die Baukunst der Römer.

Estude com atenção as figuras em ambos e aprenderá muito sobre como montar uma estrutura arquitravada.



Templo de Hefesto, Atenas, c. 450 a.C., teto com vigas e artesões em pedra. Foto: Pedro P. Palazzo. 2011
Figura 67: Templo de Hefesto, Atenas, c. 450 a.C., teto com vigas e artesões em pedra. Foto: Pedro P. Palazzo. 2011

A arquitetura clássica em pedra não é uma transposição direta da madeira, mas uma recriação das proporções e da estética tradicionais da construção em madeira para uma concepção construtiva totalmente nova. Uma evidência disso são os tetos artesoados dos templos clássicos do século V a.C. em diante, como o templo de Hefesto em Atenas (fig. 67). Os artesões ou caixotões são sistemas formados por grelhas e lajes de pedra que vencem os vãos entre as vigas ou barrotes, levando em conta o fato de que a pedra é mais dura que a madeira, mas tem menor desempenho à flexão.

Opistódomo do Partenon, corte perspectivado mostrando a estrutura das vigas, barrotes e artesões por Josef Durm, 1910
Figura 68: Opistódomo do Partenon, corte perspectivado mostrando a estrutura das vigas, barrotes e artesões por Josef Durm, 1910

Teto artesoado do salão norte do Erecteion, Atenas, desenho por Josef Durm, 1910
Figura 69: Teto artesoado do salão norte do Erecteion, Atenas, desenho por Josef Durm, 1910

Conclusão

O mito da cabana primitiva nos deu a deixa para falar da madeira como material de construção primordial. Esse material se presta a sistemas de construção que chamamos de arquitravados, compostos de modo aditivo por pilares e vigas apoiados ou encaixados uns nos outros. As formas que esses sistemas assumem em todo o mundo vêm justamente das propriedades estruturais da madeira: alta resistência à tração e à compressão, baixa resistência ao cisalhamento. Isso resulta em sistemas com colunas e vigas esbeltas, ligadas por capitéis lineares ou mãos de apoio bem desenvolvidas. O contraventamento é uma necessidade, e costuma ser feito com elementos encaixados uns nos outros, núcleos de paredes em alvenaria ou terraços rígidos. Pela sua natureza, a construção arquitravada resulta em malhas lineares de pontos de apoio; vamos ver na sequência como essa lógica é diferente da construção murária — feita de paredes portantes.

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