História ou arquitetura
Em 1839, o arquiteto americano Ithiel Town encomendou ao seu amigo Thomas Cole uma pequena pintura de paisagem com algumas construções clássicas. Em vez disso, Cole pintou uma imensa alegoria da Arquitetura, intitulada Sonho do arquiteto (fig. 1). A tela representava os principais estilos arquitetônicos do Ocidente, desde o Egito antigo até a Idade Média passando pela Antiguidade clássica. Town se negou a receber a pintura porque ela não atendia à especificação da encomenda.
O mal-entendido dos dois amigos, agora ex-amigos, está na oposição entre uma análise crítica da tradição arquitetônica, consagrada na pintura de Cole, e a expectativa de Towne por uma aplicação integrada dessa tradição. É a mesma oposição que existe entre pesquisar a História da arquitetura e fazer Arquitetura tradicional. O curso que estamos iniciando aqui não é propriamente de História da arquitetura, e sim um curso de Arquitetura tradicional. Agora vamos ver por que essa escolha tem que ser feita.
Para Town, o cliente, arquitetura e pintura são ofícios que atuam num mercado e que, na maioria dos casos, trabalham por encomenda. O profissional recebe instruções e executa um serviço especializado, com autonomia para tomar decisões técnicas e estéticas que são da sua alçada; isso inclui ser capaz de manejar um repertório de iconografia tradicional.

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Cole, o profissional especializado em questão, de fato detinha a formação intelectual que o cliente esperava dele. Não há duvida de que ele enxergasse o estudo da história como um instrumento técnico do seu trabalho. Apesar disso, Cole produziu uma pintura que não simplesmente se serve de elementos históricos, mas uma que diz alguma coisa sobre a história da arquitetura. O Sonho do arquiteto de Cole é uma espécie de crítica — ou seja, um produto que consiste em analisar o seu tema. No caso, ele analisa o modo como o arquiteto (fig. 2) organiza o repertório da tradição ocidental.
Crítica e operatividade
Essa crítica é o cerne da pesquisa histórica contemporânea, mas ela
produz, segundo o historiador britânico Stephen Bann, necessariamente
uma justaposição de fragmentos.Bann, “Clio in Part”.
Cole certamente tinha motivos para estar orgulhoso
da qualidade da pintura que ele produziu. Mesmo assim, o cliente também
tinha razão em dizer que a pintura não atendia à encomenda. O que Town
esperava receber não era uma análise da diversidade de estilos
históricos, e sim o uso desses estilos numa composição tradicional
integrada. O pintor alemão Leo von Klenze, alguns anos mais tarde,
demonstraria justamente essa integração na sua série de pinturas
arqueológicas de Atenas (fig. 3)

Temos aqui um conflito entre dois valores intrínsecos à definição moderna de profissões como a arte e a arquitetura: por um lado, o papel da crítica que transforma constantemente o campo profissional; por outro lado, a natureza do trabalho técnico nesse mesmo campo profissional, que é a de ser operativa — ou seja, de produzir um objeto. Crítica e produção são ambas tarefas válidas e necessárias na disciplina da Arquitetura, mas elas são tarefas distintas entre si. Só a História da arquitetura tem os instrumentos para fazer crítica, e só o ofício da Arquitetura tem os instrumentos para ser operativa.
Apesar disso, é tentador misturar as duas coisas. Uma grande parte da bibliografia produzida no século XX que, supostamente, eram livros de História da arquitetura, na verdade eram argumentos teóricos sobre o ofício da Arquitetura, usando a história como pretexto.

O uso de argumentos pseudo-históricos para servir aos propósitos da teoria da arquitetura tem um pressuposto implícito: Arquitetura é o que os arquitetos fazem. Esse pressuposto vem de longe. O arquiteto romano Vitrúvio, por volta do ano 15 a.C., escreveu o mais antigo tratado completo sobre a disciplina da arquitetura (fig. 4). Para ele, a Arquitetura era um campo do conhecimento definido pela formação e atuação do arquiteto. Essa formação foi um dos primeiros assuntos nos quais ele tocou, logo no começo do primeiro capítulo do primeiro livro. A história faz parte de um rol bastante amplo de conhecimentos que o arquiteto profissional tem que dominar:
A ciência do arquiteto é ornada de muitas disciplinas e de vários saberes […] E assim, parece que aquele que pretende ser arquiteto deverá se exercitar [na prática e na teoria]. […] Deverá ser versado em literatura, perito no desenho gráfico, erudito em geometria, deverá conhecer muitas narrativas de fatos históricos. Ouvir diligentemente os filósofos, saber de música, não ser ignorante de medicina, conhecer [a jurisprudência], ter conhecimento da astronomia e das orientações da abóbada celeste.Vitrúvio, Tratado de arquitetura, I, i.
A descrição de Vitrúvio já massageou o ego de muitas gerações de arquitetos. Ela mostra um profissional culto, o que chamaríamos hoje de humanista, membro da elite cultural da sociedade e talvez próximo do poder político, como o próprio Vitrúvio desejava ser. Essa autoimagem foi bem capturada na cena imaginária do gravurista francês Sébastien Leclerc, que mostra Vitrúvio apresentando um projeto ao imperador Augusto (fig. 5).


Esse argumento é imensamente influente na teoria da arquitetura até hoje, passando pelos tratadistas do Renascimento e pela famosa carta do arquiteto modernista brasileiro Vilanova Artigas (fig. 6), Arquitetura: atribuição do arquiteto. Mais ainda, ele casa bem com as pretensões humanistas do ensino de arquitetura dentro das universidades, que é o modelo dominante nas Américas desde a metade do século XX.
Anacronismo
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Se olharmos por esse lado, a História da Arquitetura passa a ser a crônica do que os arquitetos fizeram ao longo dos séculos, ou seja, um elenco de obras eruditas e, em geral, monumentais. Na pintura de Simon Vouet, os arquitetos do Mausoléu de Halicarnasso, na Grécia antiga (fig. 7) aparecem como os profissionais que concebem no desenho. Eles estão diretamente associados ao poder político, na figura da rainha, e bem distantes da construção propriamente dita. Acontece que os arquitetos que Vouet mostrou eram anacrônicos; eles não correspondiam à realidade do ofício na Antiguidade (uma realidade que Vouet não tinha como conhecer). As personagens da pintura mais pareciam os arquitetos que eram burocratas da Coroa francesa no século XVII.

O historiador da arquitetura italiano Manfredo Tafuri (fig. 8)
mostrou que esse anacronismo não acontece por acaso, mas que ele aparece
toda vez que alguém tenta misturar a crítica histórica com a produção de
uma teoria da Arquitetura. Tafuri escreveu que isso não acaba sendo nem
História, nem Arquitetura: não é História porque está a reboque de um
projeto de legitimação profissional do arquiteto contemporâneo, e
portanto não tem autonomia crítica; e não é Arquitetura porque faz um
recorte reducionista da disciplina, que não dá o suporte adequado seja
para a teoria, seja para a produção.Tafuri, Teorias e história da
arquitectura.
O Sonho do Arquiteto de Cole (ver fig. 1) nos trouxe um conflito entre História e Arquitetura que Tafuri nos deu o caminho para resolver: qual é o lugar da História na Arquitetura, e em particular, para que serve o estudo da História da Arquitetura numa universidade que forma profissionais da Arquitetura (fig. 9)?
Para que serve a história da arquitetura?
A única resposta possível a esta última pergunta é: o estudo da História da Arquitetura serve para fazer história da arquitetura. História é crítica, e a autonomia intelectual necessária para fazer uma análise crítica se perde assim que a história precisa se dobrar a alguma exigência prática do ofício. Por exemplo, a famosa pesquisa de repertório que todo ateliê de ensino de projeto pede não é uma pesquisa histórica, por mais que estude obras do passado. A pesquisa de repertório é um estudo de obras de arquitetura com um propósito operativo. Isso quer dizer que fazer pesquisa de repertório é ruim, é errado? Claro que não! Isso quer dizer que estudar História da Arquitetura é uma coisa, e estudar Arquitetura usando modelos tradicionais é outra.
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Só que cada curso de “História da Arquitetura” nas universidades precisa assumir se quer fazer uma coisa ou outra. Em faculdades grandes, que formam muitos futuros pesquisadores, como a FAUUSP (fig. 10) ou a FAU–UFRJ, é comum os cursos de História da Arquitetura serem explicitamente críticos. Já em faculdades menores, que formam sobretudo projetistas, há uma tendência em tratar implicitamente os cursos históricos como uma espécie de base de cultura geral.

É nessa “cultura geral” que mora um último perigo: o da indecisão. O
professor da FAU–UFRJ Gustavo Rocha
Peixoto (fig. 11) defende que os cursos de “cultura geral” se guiem pelo
que ele chama de “ensino meta-histórico”.Rocha-Peixoto, A estratégia da aranha; ver
também A estratégia da aranha.
Resumindo (e provavelmente mutilando
terrivelmente) a tese do professor (por sinal, assistam ao vídeo da
palestra dele que está no link), Rocha Peixoto defende um ensino de
História que desenvolva ao mesmo tempo o espírito da crítica em
história e a imaginação produtiva da arquitetura.
Na prática, esse ensino, quando é bem conduzido, alterna
entre a crítica e a formação de um repertório criativo. Na pior das
hipóteses, ele poderia formar um repertório sem critérios claros,
portanto contraproducente, sem alcançar tampouco nenhuma reflexão
crítica. Um exemplo disso é o esforço premeditado que o teórico Colin
Rowe fez para argumentar que a arquitetura modernista de Le Corbusier na
década de 1920 se baseava no classicismo de Palladio.Rowe, “The Mathematics of the Ideal
Villa”.
O resultado é um exercício gráfico curioso
(fig. 12), mas sem nenhuma prova de que o paralelo fosse intencional, ou
mesmo relevante.
O perigo é especialmente grande quando se trata de estudar a arquitetura tradicional (daqui a pouco vamos definir o que seja isso). Todo arquiteto contemporâneo tem um desejo irresistível de levar os modelos tradicionais pelo caminho da abstração, e essa abstração leva a interpretações arbitrárias, à projeção de uma ideologia decidida a priori sobre o objeto: novamente, nem crítica histórica do objeto e nem estudo criterioso do modelo tradicional.

Conclusão
Este curso é um estudo operativo da arquitetura tradicional.
O seu objetivo é recompor os processos de produção do ambiente construído anteriores à Revolução industrial. Essa recomposição é um esforço de responsabilidade social que envolve profissionais e comunidades por todo o mundo, e que vem crescendo desde a segunda metade do século XX (fig. 13). O curso se divide em duas partes. A primeira parte é composta por três módulos teóricos, que introduzem os três grandes princípios da arquitetura tradicional: construção, espacialidade e plástica. A segunda parte é composta por quatro módulos que desenvolvem os quatro principais problemas tangíveis da prática: elementos da arquitetura, composição com espaços, tipologia edilícia e urbanização.

Continuidade e ruptura
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Este curso propõe um estudo operativo da arquitetura tradicional. Já vimos que isso é diferente de uma história crítica da arquitetura, na medida em que o nosso objetivo é reconstituir um processo produtivo por inteiro, e não analisar as suas partes e relações. Esse objetivo implica que “arquitetura tradicional” é, primeiro, um conjunto de algum modo coerente e, segundo, algo que existe em contraste com “arquitetura moderna”. Essas duas afirmações têm um quê de óbvio quando olharmos para alguma intervenção moderna numa cidade tradicional (fig. 14). Por outro lado, elas também têm um quê de absurdo quando olhamos para a arquitetura como parte de um processo histórico que não tem um ponto de corte nítido entre tradição e modernidade.
Para podermos decidir entre o óbvio e o absurdo, vamos explorar duas categorias de argumentos: uma que olha para o estilo arquitetônico como indicador de continuidade ou ruptura, e outra que trata dos processos produtivos da arquitetura. A busca pelo limite entre tradição e modernidade vai nos levar até o começo do século XX. Finalmente, vamos buscar alguns princípios gerais que distinguem a construção tradicional da construção moderna.
Pelo menos desde o século XVIII, o estudo da história no Ocidente tem uma relação de amor e ódio com a classificação das sociedades do passado e do presente em “caixas” rotuladas como períodos, culturas ou estilos (fig. 15). Nos séculos XIX e XX, essa rotulagem em períodos, demarcados com uma nitidez bem forçada, foi uma componente central em todas as “escolas” historiográficas da Europa continental, do positivismo ao marxismo. Ela parte do princípio que todos os períodos históricos são entidades totalmente diferentes e incomparáveis entre si. Nesse esquema, não existe uma tradição que possa ser contrastada com a modernidade, só um acúmulo de caixas históricas e culturais que precisam ser classificadas e descritas nas suas respectivas individualidades pelos historiadores.

Continuidade com o passado


Na história da arquitetura, a situação era um pouco diferente: havia um senso de continuidade do presente com o passado que se baseava sobretudo no uso dos estilos neo-renascentistas e neomedievais. Para os arquitetos do século XIX e da primeira metade do XX, o que se chamava de “história” da arquitetura era um processo gradual de desenvolvimento dos estilos, quase sem grandes rupturas. Todas as “caixas” de estilos do passado eram um acervo disponível, por assim dizer, para servir como exemplo e inspiração. A epítome dessas infinitas possibilidades é uma mansão construída a partir de 1919 pela arquiteta americana Julia Morgan (figs. 16, 17). Essa mansão, a residência do magnata da imprensa William Randolph Hearst, combina vários estilos de inspiração espanhola, desde o gótico até o barroco (figs. 18, 19), inclusive obras de arte originais desses períodos que foram levadas da Europa (fig. 20).





Jean-Nicolas-Louis Durand (Nicolas para os íntimos), que foi
professor de projeto na Escola politécnica de Paris no começo do século
XIX, defendia essa unidade entre o
presente e o passado. Ele demonstrou essa percepção de unidade
publicando uma espécie de apostila para uso dos seus alunos.Durand, Recueil et parallèle des édifices de tout
genre anciens et modernes.
O livro de Durand apresentava galerias e mais
galerias de edifícios com função semelhante, mas de épocas e lugares
diversos. Esses edifícios semelhantes eram reunidos numa mesma prancha e
desenhados na mesma escala, para serem usados como repertório de projeto
(fig. 22).

Esse modo de pensar a história da arquitetura como um repertório de
estilos de todas as épocas para uso do projeto é conhecido como
“arquitetura analítica” — porque o universo do repertório era estudado
e, por assim dizer, desmanchado para ser recombinado em soluções novas,
nunca repetitivas, mas sempre em harmonia com o que se entendia ser o
desenvolvimento do estiloGarric, “Des frontispices aux « éléments
analytiques »”.
(fig. 23).
A arquitetura analítica segundo o método de Durand vai ser uma das
bases do ensino de arquitetura nas academias de arte que seguiam o
modelo da École des Beaux-Arts em Paris.Corona Martínez, Ensaio sobre o projeto.
Por isso, esse método é conhecido como
acadêmico ou Beaux-Arts. Os levantamentos analíticos enviados
pelos bolsistas da Academia da França em Roma nos séculos XIX e XX
(fig. 24) estão entre os documentos mais precisos e mais úteis para quem
estuda arquitetura clássica.


Então, será que o estilo é a chave para compreender a unidade da arquitetura tradicional? A capacidade do método acadêmico de manipular uma variedade de estilos representa, sem dúvida, uma vontade de demonstrar continuidade com as tradições. Essa vontade vai garantir a harmonia visual das cidades do século XIX mesmo diante da modernização tecnológica muito intensa. As ruas de Paris (fig. 25) parecem uma paisagem harmoniosa e coerente hoje em dia justamente porque elas são o resultado de séculos de normas urbanísticas e de esforços dos construtores para se harmonizar com as construções preexistentes.
Descontinuidade com o passado
Mesmo assim, o ideal de unidade da arquitetura de todas as idades
graças à continuidade do estilo já tinha começado a se esgarçar
dentro do próprio método acadêmico. De fato, o estudo da
arquitetura analítica tinha uma aporia central. Quanto mais os
arquitetos estudavam as construções do passado pela lente da
continuidade do estilo, mais ficavam evidentes as
descontinuidades entre períodos que supostamente pertenciam à
mesma tradição “clássica”. Essa discrepância começou a ser percebida por
Piranesi na segunda metade do século XVIII, mas ficou escancarada quando o arquiteto
franco-alemão Jacques-Ignace Hittorff publicou, em 1851,Hittorff, Architecture polychrome chez les
Grecs.
reconstituições de templos gregos coloridos
(fig. 26).


A crise da diversidade de estilos no século XIX foi um problema essencialmente elitista: ela envolvia o estudo da arquitetura erudita do passado para a formação dos arquitetos eruditos do presente. O reconhecimento da diversidade de tradições se aprofunda não só no tempo, mas também no espaço, quando a arquitetura vernácula passa a ser objeto de estudo na história e no projeto (fig. 27). Isso acontece, sobretudo, a partir da década de 1960.
Em 1964, o arquiteto americano Bernard Rudofsky apresentou a
exposição Arquitetura sem Arquitetos (fig. 28) no Museu de Arte Moderna
de Nova York (MoMA). Essa exposição deu a deixa para “libertar” o
conceito moderno de arquitetura do domínio do ofício formal do
arquiteto. Depois, veio em 1969 o livro House Form and Culture
de Amos Rapoport,Rapoport, House Form and Culture.
que deu uma base sociológica para o estudo da
arquitetura popular. O estudo da arquitetura vernácula ajuda a
desmantelar aquela definição elitista da arquitetura vinculada à
profissão do arquiteto. Já vimos como essa definição nos leva ao
anacronismo e a uma visão equivocada da arquitetura tradicional.


Rudofsky era um arquiteto modernista. A relação do movimento Moderno
com o problema da unidade versus diversidade da arquitetura
tradicional é contraditória, mas as idas e vindas nesse argumento nos
ajudam a perceber melhor a diferença entre arquitetura tradicional e a
moderna. Para alguns autores importantes do modernismo, afirmar que a
tradição tem uma essência unitária por cima das diferenças de período
histórico ou região era um meio de legitimar o próprio modernismo. O
suíço Sigfried GiedionGiedion, Space, Time and Architecture.
e o brasileiro Lucio Costa usaram esse argumento
para afirmar que a arquitetura moderna nada mais é do que a última etapa
no desenvolvimento natural da arquitetura. Costa chegou mesmo a
esquematizar essa pretensão de naturalidade num croquis muito famoso de
1937.Costa, “Documentação necessária”,
36–37.
Esse croquis foi publicado na primeira edição da
Revista do Patrimônio e mostra uma espécie de “história” da
arquitetura brasileira como uma progressão de menos janelas para mais
janelas, terminando, é claro, na janela–fita do modernismo
(fig. 29).
Moralismo e arquitetura
Os discursos que se servem da pretensão continuidade entre tradição e modernidade costumam ser discursos moralistas. Eles enxergam algum defeito não só estético, mas sobretudo ético, em algum momento da história da arquitetura, e prometem um movimento arquitetônico que vai recuperar a moralidade perdida — principalmente no que diz respeito a uma suposta exigência de correspondência direta entre tecnologia e estilo.
É o caso dos argumentos de Giedion e Lucio Costa, que denunciavam a imoralidade do ecletismo e diziam que o modernismo representava não tanto a criação de um modo totalmente novo de fazer arquitetura, mas a volta de um modo correto de fazer — e por que não de um modo primordial, segundo Giedion.

Só que esse modo de argumentar não nasceu com o modernismo; ele aparece desde alguns autores século XVIII, e se torna um modo hegemônico de falar de arquitetura pela metade do século XIX. Quem mais se destacou com argumentos moralistas nessa época foi o arquiteto, pintor e fotógrafo inglês John Ruskin (fig. 30). Ele é um autor bastante popular entre os arquitetos brasileiros hoje em dia, especialmente por causa das suas ideias radicais sobre restauro e sobre a emancipação do operário no canteiro de obras.


Ruskin propõe uma teoria que é familiar e interessante para o nosso
estudo. No seu livro mais famoso, As sete lâmpadas da
arquitetura, de 1849,Ruskin, The Seven Lamps of Architecture.
ele argumenta que a arquitetura precisa
representar a verdade (segunda lâmpada). Para isso, o edifício
deve expor o seu sistema construtivo com clareza, como na arquitetura
gótica (fig. 31). Mas ele equilibra a verdade com a vida
(quinta lâmpada). A vida, para Ruskin, aparece quando o construtor se
sente realizado numa organização tradicional do trabalho como, também, a
do canteiro gótico (fig. 32), onde ele pode trabalhar com autonomia e
criatividade. O construtor no canteiro, e não o arquiteto no seu
escritório…

O historiador inglês David Watkin (fig. 33), em 1968,Watkin, Morality and Architecture.
jogou Ruskin e os modernistas no mesmo balaio: o
dos autores que justificam o estilo arquitetônico pelas suas
conotações morais. Watkin mostrou que essa associação é
puramente arbitrária e não tem nada a ver com aspectos intrínsecos à
obra arquitetônica. O que Watkin tinha em mente nessa discussão era uma
definição de arquitetura enquanto prática profissional. A única coisa
que o estilo representa é o próprio estilo, assim como a prática dos
diferentes ofícios da construção — do pedreiro ao arquiteto — exprime o
próprio lugar dessas práticas no processo produtivo da arquitetura. O
estilo não representa visualmente o modo de fazer a arquitetura, e a
rigor qualquer modo de produzir as construções pode se vestir
com qualquer estilo.
O ecletismo é exatamente isso, mas também temos exemplos onde uma estética modernista veste uma construção tecnologicamente “atrasada”: é o caso da residência projetada pelo arquiteto Gregori Warchavchik na vila Mariana, em São Paulo (fig. 34). A ironia da chamada “casa modernista” de Warchavchik não é tanto que ela tenta disfarçar uma construção com telhado cerâmico e paredes portantes, e fingir uma cobertura plana ou janelas–fita. A ironia é que a própria existência dessa casa demonstra a continuidade entre, de um lado, o processo construtivo que está por trás dos estilos ecléticos e, do outro, as demandas estéticas do modernismo.
Essa continuidade dá razão, pelo menos em parte, a Ruskin quando ele afirma que o processo construtivo é um fator determinante para caracterizar a arquitetura. Com esse conflito entre uma descrição da arquitetura baseada em estilos e outra baseada no processo produtivo, vamos enfim conseguir distinguir a arquitetura tradicional da arquitetura moderna.

Estilo ou processo

Agora já temos duas categorias de argumentos discutindo a descontinuidade entre arquitetura tradicional e moderna.
A primeira categoria se concentra nas diferenças de estilo. Ela tenta mostrar que cada período histórico, com o seu estilo característico, é uma singularidade absolutamente inconciliável como qualquer outro período e estilo. Desse ponto de vista, não existe continuidade entre o tradicional e o moderno, mas tampouco existe uma arquitetura tradicional (fig. 35).
A segunda categoria se concentra nas diferenças de processo produtivo. Ela prioriza uma clivagem fundamental entre a construção artesanal das tradições e a construção moderna, que separa a concepção da execução e, no fim da linha, atomiza ao extremo o próprio processo produtivo da obra (fig. 36).

Vimos mais acima que a comparação entre estilos (fig. 37) servia, no século XIX e início do XX, um propósito importante no estudo e na prática da arquitetura eclética. Apesar de a arquitetura analítica acabar mostrando a diversidade quase infinita de tradições arquitetônicas, ela consegue conciliar essa diversidade num repertório estruturado. O ecletismo consegue acomodar a diversidade de estilos muito além do cânone europeu (fig. 38) e, inclusive, separar o estilo das outras características da edificação — construção e espacialidade.

Paradoxo dos estilos

Apesar disso, seguir o fio condutor do estilo nos leva a um paradoxo justamente quando tentamos demarcar a separação entre o repertório de estilos ecléticos e o modernismo. A síntese eclética de estilos que o método acadêmico realiza é uma atitude de arquitetos que se consideram eles próprios como modernos. Essa modernidade vem, por um lado, do fato de que eles têm todos os períodos históricos pelas costas. Por outro lado, a modernidade do academicismo também está nos recursos técnicos e sobretudo críticos que está ao alcance dos arquitetos ecléticos: a metodologia arqueológica e historiográfica que permite reconstituir os estilos históricos. O exemplo emblemático dessa visão de conjunto sobre a história é a “Árvore da Arquitetura”. Esse diagrama foi desenhado para a terceira edição da história da arquitetura de Banister Fletcher, em 1899, e só deixou de ser incluído a partir da décima sexta edição, em 1961 (fig. 39). A capacidade que o ecletismo tem de trabalhar com as tradições estéticas de todo o mundo e de todos os tempos é resultado precisamente da sua própria modernidade.
E para completar o paradoxo: apesar de o modernismo rejeitar ideologicamente a estética do ecletismo acadêmico, do ponto de vista dos processos produtivos da arquitetura — ou seja, as tecnologias e as instituições, inclusive de ensino, que produzem arquitetos e construções — o modernismo é uma continuação do sistema Beaux-Arts com muito pouca ruptura.
Um exemplo dessa continuidade tecnológica é o edifício acadêmico do Grand Central Terminal em Nova York, que foi construído na primeira década do século XX; por trás do revestimento classicista, ele usou componentes e processos construtivos tão modernos quanto os componentes e processos do arranha-céu modernista que o modernista Walter Gropius implantou logo atrás do terminal cinco décadas depois (fig. 40).


O modernismo não só se calca na tecnologia que já era usada pela arquitetura eclética: ele também ocupa os mesmos lugares institucionais e espaciais inventados pelo sistema acadêmico. Esses lugares são as escolas de belas-artes, o mercado editorial e, quase que como uma desforra, o próprio centro físico da cidade industrial. Le Corbusier não pode se contentar em propor a sua Cidade Contemporânea no meio de uma área aparentemente vazia; ele precisa inserir um trecho do seu plano Voisin em pleno centro histórico de Paris (fig. 41). A afirmação da legitimidade do modernismo como sucessor da arquitetura tradicional depende dessa tomada de posse simbólica da cidade existente.
É sintomático que o plano Voisin não pretendesse substituir a arquitetura eclética que Le Corbusier desprezava tanto, e que ocupava sobretudo os novos bulevares na periferia de Paris (fig. 42). Em vez disso, o modernista propõe eviscerar a mesma área do centro histórico que já estava na mira dos projetos de “saneamento” do século XIX — os mesmos projetos que resultaram na abertura das avenidas que Le Corbusier ridicularizava por serem grafismos geométricos sem sentido.


O historiador da literatura Hans Robert Jauss se apoia no poeta
francês do século XIX Charles Baudelaire
e no filósofo alemão do século XX Walter
Benjamin para defender essa posição.Jauss, “Tradition, Innovation, and Aesthetic
Experience”.
Ele sustenta que a capacidade de classificar e
apreciar a arte de outros períodos históricos e culturas é uma
característica da modernidade como um todo, incluindo tanto o método
acadêmico quanto as vanguardas modernistas (fig. 43). Outros aspectos,
mais materiais, também aproximam o modernismo do ecletismo acadêmico;
além da continuidade tecnológica, o modernismo se insere nas mesmas
estruturas de financiamento e de poder político que, antes, promoviam o
ecletismo.
Acabamos de tomar um desvio que foi do século XVIII ao XX para tratar de delimitar tradição e modernidade. Nesse processo, o que encontramos foi uma transição gradual e não uma ruptura nítida. Afinal, como diz o historiador da arquitetura brasileiro Gustavo Rocha-Peixoto (fig. 11),
[…] no fundo, a história não passa de uma grande e única transição.Rocha-Peixoto, A estratégia da aranha, 41.
Conclusão
A diferença entre a arquitetura tradicional e a moderna, como acabamos de ver, não consiste na rejeição ou na adoção de algum estilo por motivos ideológicos — seja esse estilo clássico, gótico, modernista ou qualquer outro. O que distingue o tradicional do moderno, afinal, é a transição gradual nos modos de fazer arquitetura — da organização do trabalho ao sistema de financiamento da construção, passando pelas tecnologias tangíveis e intangíveis usadas no processo produtivo.
É bem verdade que o modernismo ideológico crava uma cunha nesse processo e radicaliza a transição. Ele assume a modernidade tecnológica e espacial não simplesmente como um fato da sociedade, mas como um objetivo a ser perseguido e impulsionado custe o que custar — às vezes até como o único objetivo que vale a pena perseguir (fig. 44). Mas essa radicalização só nos ajuda a perceber melhor as características da transição.

Arquitetura é construção
Este curso começa explorando os três princípios da arquitetura:
construção, espacialidade e plástica. A divisão da arquitetura nessas
três componentes conceituais foi formulada no tratado de Vitrúvio, por
volta do ano 15 a.C.:Vitrúvio, Tratado de arquitetura, I,
iii.
Tríade vitruviana
. . .
- Firmitas
-
Solidez da construção, tanto na realidade quanto na segurança visual que ela transmite. Durabilidade e sustentabilidade dos processos construtivos.
. . .
- Utilitas
-
Funcionalidade dos espaços arquitetônicos, considerando a sua resiliência diante das inevitáveis mudanças de uso que ocorrem no longo prazo.
. . .
- Venustas
-
Geralmente traduzida como beleza ou agrado, inclui também a adequação visual de uma construção ao seu propósito social mais amplo.
Cada um desses princípios é a base para uma categoria de definições muito difundidas da arquitetura; você certamente já ouviu falar em algumas delas. À firmitas corresponde a definição de que arquitetura é construção. À utilitas corresponde a definição de que arquitetura é espaço socialmente organizado. E à venustas corresponde a definição de que arquitetura é arte.
Dos três princípios, a construção propriamente dita é o requisito para se chegar aos outros dois. Portanto, vamos considerar antes de mais nada que Arquitetura é construção. Temos que entender a construção, aqui, tanto como a materialidade das edificações, quanto como os processos que produzem as edificações: o trabalho e a cadeia de de fornecimento e processamento dos materiais (fig. 45).


Essa definição não é exclusiva da arquitetura tradicional. O engenheiro e arquiteto moderno francês Auguste Perret insistia na relação muito próxima entre arquitetura e construção. Nas suas obras construídas em concreto armado, como o palácio Iéna em Paris (fig. 46), tanto quanto nos seus aforismos famosos, Perret defendia uma identidade quase completa entre arquitetura e construção; nesse caso, a arquitetura não é algo que incrementa ou que se distingue da construção, mas é ela própria a expressão da lógica construtiva:
Arquitetura é a arte de fazer cantar o ponto de apoio.

Começamos com isso, portanto:
Arquitetura é construção.
. . .
Corolário 1: os objetos arquitetônicos são objetos da construção; o ofício da arquitetura é lidar com objetos da construção — imaginar, realizar e estudar esses objetos; o espaço arquitetônico é aquele delimitado por construções; a função social da arquitetura está no modo como ela põe em prática as relações produtivas e ideológicas da sociedade.


Um esclarecimento sobre os “objetos da construção” para nos desvencilhar de qualquer mal-entendido antes de prosseguir. Objetos da construção não são necessariamente objetos construídos, nem sequer objetos construtíveis. Seja nos mundos artísticos e literários, seja na realidade virtual (fig. 48), temos muitos “objetos da construção” que são imaginados como pertencendo a processos construtivos (fig. 49). E, claro, a construção pode envolver qualquer arranjo de materiais inertes ou vivos — pense no paisagismo, por exemplo. É isso o que temos em mente.
Corolário 2: arquitetura tradicional é aquela que resulta dos processos produtivos tradicionais da construção, tanto no passado quanto no presente.
Esse segundo corolário é o que caracteriza, de fato, a arquitetura tradicional. Arquitetura tradicional não é fazer estilos históricos usando processos construtivos industrializados: isso é possível, e tem sido feito com sucesso desde o século XIX. O edifício Martinelli, em São Paulo, foi construído em concreto armado e com estilo neo-Renascimento francês (fig. 50). Ele é um exemplo brilhante de como fazer construção moderna seguindo as lógicas espacial e plástica tradicionais.


Só que isso não é o objeto deste curso: aqui vamos nos ocupar da tradição arquitetônica como um esforço global, que envolve o tripé completo dos princípios da arquitetura: construção tradicional, espacialidade tradicional e plástica tradicional. Vamos estudar a aplicação desses princípios desde a pré-história até o presente. São práticas que continuam em vigor tanto na conservação de construções históricas quanto em novas edificações; as técnicas e os processos são os mesmos, como na obra do carpinteiro francês Henri Guillou (fig. 51).

A prática da construção tradicional
na sociedade moderna nos obriga a considerar o processo produtivo como
um problema a ser enfrentado. Essa questão vem sendo abordada desde a
década de 1960 pelo arquiteto brasileiro Sérgio Ferro (fig. 52). No
entanto, a sua teoria esbarra numa contradição inerente à construção
moderna, que o próprio Ferro não consegue superar: a causa da separação
entre arquitetura e construção, no pensamento marxista de Ferro, é a
separação do processo produtivo entre arquiteto e construtor.Ferro, Arquitetura e trabalho livre.
Essa separação se aprofunda com a gradual industrialização do processo construtivo; no jargão marxista, a indústria aliena o operário na linha de produção com respeito ao domínio material, mas também intelectual, sobre a cadeia produtiva da construção no seu todo. Ferro busca encontrar um sistema onde todos os trabalhadores da construção se apropriem de todo o processo produtivo da obra (fig. 53).


A aporia de toda a crítica de Ferro e de outros arquitetos marxistas está em querer emancipar o trabalhador da construção sem questionar nem a existência do arquiteto como responsável pela criação de uma obra autoral, nem a industrialização da cadeia produtiva da construção. O resultado dessa crítica incompleta é a produção de obras arquitetônicas que são, primeiro, absolutamente autorais, ou seja, obras onde a “mão” do arquiteto–artista predomina sobre a autonomia dos trabalhadores; segundo, obras que servem a clientes burgueses e legitimam as relações de classe social que Ferro pretende combater; terceiro, obras que reproduzem a alienação do trabalho porque usam processos predominantemente industrializados, a começar pelo concreto armado (fig. 54).
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Nossa primeira aproximação ao estudo da arquitetura tradicional dividiu o campo da arquitetura em três princípios: construção, espacialidade e plástica, onde a construção é a base dos outros dois princípios. Na continuação, vamos detalhar o que é construção tradicional e como ela é diferente da construção moderna.
Adendo: problemas com outras definições de arquitetura
Arquitetura é arte?

Em muitos casos, a definição de arquitetura tem duas partes: primeiro, afirma-se que arquitetura é construção; depois, essa afirmação é qualificada: arquitetura é algo a mais do que a “simples construção”, como dizia Lucio Costa (fig. 55):
Já é tempo, portanto, de se reconhecer agora, de modo inequívoco, a legitimidade da intenção plástica, consciente ou não, que tôda obra de arquitetura, digna dêsse nome — seja ela erudita ou popular —, necessariamente pressupõe.Costa, Considerações sôbre arte contemporânea, 4.

A definição de Lucio Costa é calcada num texto de um dos maiores teóricos do modernismo, o suíço Le Corbusier (fig. 56). Num dos manifestos fundadores do modernismo, o livro Por uma arquitetura que ele publica em 1923, Le Corbusier insiste na diferença entre engenharia e arquitetura. Enquanto a engenharia é útil, eficiente e econômica, só a arquitetura desperta emoção:
O arquiteto, ordenando formas, realiza uma ordem que é pura criação de seu espírito; pelas formas, afeta intensamente nossos sentidos, provocando emoções plásticas; pelas relações que cria, desperta em nós ressonâncias profundas, nos dá a medida de uma ordem que sentimos acordar com a ordem do mundo, determina movimentos diversos de nosso espírito e de nossos sentimentos; sentimos então a beleza.Le Corbusier, Por uma arquitetura, 3.
Desde já, temos um problema para falar de arquitetura tradicional. Tanto a equivalência da arquitetura com uma especialização profissional quanto o conceito de arquitetura como algo que modifica ou aumenta o efeito da “simples construção” exigem uma distinção fundamental que não é evidente em si mesma. Essa distinção pode ser entre profissionais arquitetos e não-arquitetos, ou entre objetos construídos que contam como arquitetura, como a obra de Le Corbusier (fig. 57), ou que não contam como arquitetura, como os silos que Le Corbusier usa como exemplos (fig. 58).


Como já vimos antes, falar de arquitetura em termos de algo que é acrescentado à simples construção pelo profissional arquiteto ou pela “legitimidade da intenção plástica” do construtor popular gera uma contradição que invalida o estudo do nosso objeto. A distinção diz respeito ao gosto de quem estabelece essa distinção, e não tem nada a ver com qualquer qualidade ou atributo intrínseco à obra. Para piorar, essa distinção supõe que nós, hoje, admitindo uma diferença entre arquitetura e construção, temos autoridade para decidir como as pessoas em todas as épocas do passado deveriam ter separado arquitetura da construção. Nada mais difícil do que saber, quanto mais decidir pelos outros, esse critério de distinção.
Arquitetura é filosofia?

Uma alternativa a esse juízo de gosto mal disfarçado é usar conceitos abstratos. Um caso extremo desse tipo de abstração, que chega a ser obscuro, é o famoso aforismo atribuído ao filósofo alemão Goethe (fig. 59):
Música é arquitetura líquida. Arquitetura é música petrificada.
Arquitetura é sociologia?

Às vezes esses conceitos se apoiam sobre uma teoria sociológica consistente. É o caso da definição que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss deu na primeira metade do século XX, a propósito de uma aldeia dos índios Bororo. Lévi-Strauss abre mão completamente de usar a própria palavra arquitetura. Em vez disso, ele descreve a aldeia em termos de morfologia ou organização geométrica abstrata:
A estrutura morfológica da aldeia exprime imediatamente a organização social.Lévi-Strauss, “Contribuição para o estudo da organização social dos índios Bororo”, 10.
Uma versão mais genérica foi formulada pelos matemáticos ingleses Bill Hillier e Julienne Hanson. Eles foram os criadores de um método de análise topológica do espaço chamado “sintaxe espacial” (fig. 61). Assim como Lévi-Strauss, eles evitam falar em arquitetura e preferem usar o conceito abstrato de “espaço”:
O espaço socialmente organizado pelos seles humanos é função de formas de solidariedade social.Hillier e Hanson, The Social Logic of Space, xi.
Indefinição das definições
Esse conjunto de definições, de Lévi-Strauss a Hillier e Hanson passando por Henri Lefèbvre, é útil em certos contextos justamente porque ela abarca a totalidade do ambiente humano. No caso específico da sintaxe espacial, que é um instrumento de análise e projeto urbanístico, o objeto de intervenção é dado a priori: alguma cidade ou trecho de cidade. Por isso, a indefinição do conceito de “espaço socialmente organizado” é útil e já está delimitada por um objeto claro e nítido.

Mas, em outros contextos, é uma definição tão abstrata que não sabemos bem a que categoria de objetos ela se refere. O que é o espaço? O que é organizar socialmente o espaço (fig. 62)? Existe um modo de organizar o espaço que não seja social? Existe alguma forma de organização social que não aconteça no espaço? Essa dificuldade de delimitar o que seja arquitetura quando ela é definida como “espaço socialmente organizado” é particularmente séria quando estamos estudando o conjunto da arquitetura tradicional no tempo e no espaço, sem um objeto recortado a priori.

Arquitetura e o círculo privilegiado
Até agora, encontramos duas classes de definições para a arquitetura:
Arquitetura é uma qualidade que distingue um profissional ou um objeto com respeito aos “simples construtores” ou às “simples construções”;
Arquitetura é o espaço socialmente organizado, e, portanto, é a representação no espaço de um modo de organização social.
O segundo modo de definir arquitetura é um pouco como a arte conceitual: desde o mictório ready-made que Marcel Duchamp expôs em 1917 numa mostra de arte em Nova York (fig. 63), qualquer coisa pode ser arte. Do mesmo modo, qualquer coisa faz parte da organização da sociedade, e qualquer coisa existe no espaço. Ora, se tudo pode ser arte e tudo pode ser arquitetura, o que separa aquilo que é arte arte daquilo que não é arte, e aquilo que é arquitetura daquilo que não é arquitetura?

A resposta é muito simples, e vem do conceito de “distinção”
formulado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.Bourdieu, A distinção.
Garry Stevens aplicou esse conceito ao domínio da
arquitetura.Stevens, O círculo privilegiado.
O que distingue a arquitetura da não
arquitetura é o cachê do arquiteto. Esse cachê pode vir enfeitado
com uma justificativa teórica da moda, à semelhança das teorias
artísticas contemporâneas como o conceito de ready-made
reciclado (com perdão pelo trocadilho) por Andy Warhol (fig. 64). Mas,
no fim das contas, essa justificativa só faz encobrir uma afirmação de
status social ou cultural. E assim estamos de volta à primeira
classe de definições, e continuamos dependentes do juízo da classe
dominante quanto ao que “presta” e ao que não “presta”.

Basicamente, o que Bourdieu e Stevens explicam é que onde os critérios são muito vagos, as distinções dependem do arbítrio de quem já se encontra num status social ou cultural elevado. Uma definição abstrata demais do círculo da arquitetura não é uma definição onde cabem todos; é uma definição onde alguns são incluídos e outros, excluídos com base numa genealogia canônica. Por sinal, é por isso que mesmo os arquitetos modernistas, que queriam romper com a arquitetura tradicional, se esforçaram tanto para controlar a narrativa da história da arquitetura (fig. 65): a genealogica canônica da arquitetura histórica é que legitimava o modernismo como último estágio dessa história.

Construção tradicional e moderna
O cerne da arquitetura tradicional, e o eixo estruturante de todo este curso, está em certos modos de produzir o ambiente construído. Esses modos fazem parte dos saberes populares em várias regiões do mundo (fig. 66), coexistem hoje em dia com a construção moderna e são influenciados por ela. A construção tradicional também é praticada por arquitetos eruditos, como o japonês Shigeru Ban (fig. 67). O arquiteto americano Steve Mouzon chama essas culturas construtivas tradicionais de “o verde originário”, por serem sustentáveis desde sempre.


Tradições da construção
Mas o que exatamente é construção tradicional? Esse termo agrupa, na verdade, três grandes tipos de tradições construtivas: estruturas tensionadas ou “tendas”, estruturas em pórticos ou “cabanas”, e estruturas feitas de paredes portantes e arcos, que vamos chamar de “cavernas”. Antes de entrarmos no detalhe de cada uma dessas tradições, precisamos entender o que distingue as tradições construtivas da construção industrializada moderna.
Os modos tradicionais de construir são marginalizados no ensino de arquitetura e engenharia, e, claro, na indústria da construção moderna. A arquiteta paquistanesa Yasmeen Lari (fig. 68) fechou o seu escritório comercial em 2010 para se dedicar à construção tradicional por meio de uma ONG. Vários fatores explicam essa situação, desde o estigma de pobreza associado a comunidades tradicionais até os ciclos de financiamento da indústria da construção moderna e exigências de certificação de desempenho das edificações. Todas essas são questões socioeconômicas complexas que têm sido debatidas em fóruns profissionais ao longo das últimas décadas. Aqui, o que nos interessa é conhecer a construção tradicional; para isso, temos que partir do que é mais institucionalizado: a construção moderna.
Figura 68: Yasmeen Lari, arquiteta, reconstrução de povoação rural na província de Sindh, Paquistão, 2011. Aljazeera via ArchDaily.
A característica que define a construção moderna é o uso de componentes construtivos industrializados. Tanto no ensino quando na prática profissional, os arquitetos esperam usar componentes padronizados, com desempenho conhecido, comprados por catálogo e às vezes até instalados pelo fornecedor. Mas o caráter industrial da construção moderna, ainda assim, precisa ser justificado.
A construção é geralmente considerada como um dos processos menos industrializados do mundo moderno (ver fig. 53). Quando se diz isso, o pressuposto costuma ser o de que um edifício deveria ser produzido como um objeto industrial móvel, digamos um objeto grande, como um avião (fig. 69). Um avião é inteiramente fabricado dentro de uma linha de produção; os seus componentes são levados para a fábrica a partir de fornecedores especializados, cada parte mais ou menos completa, e montados com precisão. Em contraste, a construção de edifícios é considerada artesanal: os seus componentes são levados para o canteiro em unidades elementares (tijolos, vergalhões, no máximo alguns caminhões de concreto), e as margens de tolerância da montagem são, em geral, grandes (fig. 70).

O que é preciso ponderar aqui, é que essas observações se referem à última etapa do processo produtivo da construção. Antes de chegar no canteiro de obra, a construção moderna é totalmente dependente de processos industrializados, a começar pelo cimento Portland. Por mais que os componentes da construção sejam simples em comparação com as peças que fazem parte da montagem final de um avião, eles são industrializados e a sua produção é mais ou menos centralizada. Isso é especialmente o caso de componentes com desempenho certificado, como o vidro (fig. 71), que tem cadeias de produção extremamente concentradas num número pequeno de fornecedores globais.


Cadeias produtivas


A construção tradicional é descentralizada, em oposição a essa concentração da cadeia produtiva da construção moderna. Mesmo os componentes tradicionais que são produzidos em massa, como os tijolos (fig. 72), tendem a ser fabricados e distribuídos em redes locais. Pode haver certa padronização — especialmente na produção de madeira serrada para a carpintaria como é o caso no norte da Europa e na América do Norte (fig. 73). Nesse caso também a diferença entre a construção tradicional e a moderna é a concentração da cadeia de fornecimento dos componentes.

A diferença entre a concentração da cadeia produtiva moderna e o localismo da construção tradicional não é só uma questão de logística. Cada vez mais, os códigos de obras e as normas técnicas em todo o mundo determinam certificações de desempenho para os componentes e sistemas construtivos (fig. 74). Em geral, as construções tradicionais atendem aos padrões mais exigentes de conforto térmico e acústico. Os materiais naturais e os processos construtivos tradicionais também emitem menos gases de efeito estufa ao longo do ciclo de vida do que a construção moderna. Acontece que a certificação do desempenho é um processo trabalhoso e caro, que enviesa o sistema a favor das grandes indústrias.
Mais ainda, a introdução da construção moderna altera toda a lógica do projeto. Não se trata simplesmente de substituir materiais artesanais por materiais industrializados, mas de pensar os sistemas construtivos de modo fragmentado. Cada componente industrializado em geral atende a um indicador de desempenho: resistência estrutural, isolamento térmico ou acústico, resistência ao fogo, etc. Portanto, o atendimento a vários indicadores é feito de modo aditivo e isolado: vários componentes lado a lado, cada um cumprindo um único papel (fig. 75). A construção moderna acaba sendo dependente de cadeias produtivas muito profundas e especializadas.

O resultado são sistemas com interações complexas e frágeis, com uma vida útil muito curta em comparação com as construções tradicionais. É o ciclo de financiamento das construções modernas, medido em décadas senão anos, que torna essa fragilidade economicamente viável: em pouco tempo, os passivos de edifícios inutilizáveis e irreparáveis, quando não de acidentes, são revertidos para terceiros, ou pior, para o público (fig. 76). Pelo contrário, a construção tradicional, como vamos ver agora, é feita para durar.

Dito de modo mais tangível: como a cadeia produtiva da construção tradicional é predominantemente local e regional, o processamento dos materiais de construção tende a ser mais simples, menos intenso e, claro, menos industrializado. A manufatura de tijolos moldados individualmente, como nesta olaria em Qom, no Irã (fig. 77), resulta em produtos visualmente parecidos com os tijolos extrudados industrialmente, mas as suas propriedades são totalmente diferentes.
Princípios da construção tradicional
As propriedades mais importantes da construção tradicional que decorrem desses processos artesanais são:
Compressão é preferível à flexão
Repetição com variações
Preferência pela compressão
No que diz respeito à compressão, em primeiro lugar, as grandes massas de parede resolvem de uma tacada só uma série de requisitos de desempenho da edificação (fig. 78). As estruturas aparentemente superdimensionadas para as cargas verticais na verdade consideram também o contraventamento para flambagem da própria estrutura e para cargas horizontais, como o vento ou terremotos.
Figura 78: Construção de abóbada de tijolos em Puducherry, Índia. Instituto Auroville, 2017.

Além disso, a massa de material denso — que pode ser pedra, tijolo ou
taipa — funciona como isolante térmico e acumulador passivo de calor
(fig. 79). Por outro lado, mesmo essas grandes massas são porosas em
certa medida: isso mantém uma boa qualidade do ar interior, sem pôr em
risco a integridade do sistema, ao contrário das construções
modernas.Fernandes et al., “Thermal Performance and
Comfort Condition Analysis in a Vernacular Building with a Glazed
Balcony”.
Quando a estrutura principal é um esqueleto em madeira, a redundância construtiva resulta naturalmente da baixa resistência da madeira ao cisalhamento — isso é válido tanto na construção tradicional quanto na moderna. O detalhamento dos apoios nas extremidades das vigas, usando capitéis ou mãos, dá um caráter distintivo marcante a cada uma das inúmeras tradições arquitetônicas da madeira (fig. 80). As árvores e o volume de florestas em cada região são o principal fator de dimensionamento dos elementos principais — colunas ou esteios e vigas ou barrotes.
Figura 81: Floresta manejada de Satoyama, Japão. UN University.
Na Europa ocidental e na Ásia oriental, desde a Idade Média, o manejo e a renovação das florestas de onde se extraía a madeira tem sido uma preocupação central para a salvaguarda das tradições construtivas. Esse manejo assumiu formas variadas historicamente, desde os privilégios da nobreza sobre o uso das matas na França medieval até interditos religiosos sobre florestas sagradas no Japão da Idade Moderna (fig. 81).
Repetição com variações
O caráter artesanal da construção tradicional permite, em segundo lugar, adaptações nos módulos dos elementos da arquitetura. Às vezes, essas adaptações não são só possíveis, mas mesmo necessárias. A arquitetura moderna tenta realizar em cada obra expressões estéticas originais a partir de componentes industriais idênticos. A arquitetura tradicional, ao contrário, não tem problema em alinhar composições parecidas entre si, usando componentes que são sempre ligeiramente diferentes de uma obra para a outra, como nas construções em volta da piazza del Campo, em Siena (fig. 82).

É claro que alguns componentes tradicionais tendem a ser mais padronizados que outros: os módulos de tijolos e blocos de adobe, às vezes até as seções de madeira serrada, tendem a se basear em medidas costumeiras nas oficinas locais ou regionais, mais raramente nacionais. Mas mesmo esses componentes podem ser ajustados às particularidades da obra: na Europa e nas Américas, por exemplo, era comum produzir tijolos dimensionados especialmente para as colunas de algum edifício importante, como nessa casa romana em Herculano (fig. 83).

Elementos maiores, como portas e janelas completas, são produzidos caso a caso, e podem muito mais facilmente ser ajustados aos requisitos de cada construção. É o trabalho que desempenham, ainda hoje, muitos marceneiros tradicionais, como o espanhol Miguel Ángel Balmaseda (fig. 84). E, claro, os módulos estruturais são sempre condicionados às dimensões do lote, sem aqueles espaços residuais que são a praga de muitas construções modernas. Por isso é que dizemos que a arquitetura tradicional se baseia na repetição de formas semelhantes, com variações nos casos particulares.
Figura 84: Marcenaria de Miguel Ángel Balmaseda, Écija, Espanha. Premio Richard H. Driehaus de las Artes de la Construcción, 2019.

Essa repetição com variações é a característica fundamental dos ambientes construídos tradicionais; é o que dá identidade aos pontos turísticos, e é o que enfatiza a coesão social de comunidades. O equilíbrio entre a harmonia do conjunto e a expressão individual não precisa ser imposto por normas urbanísticas exaustivamente detalhadas, e nem depende da boa vontade do cliente ou de alguma habilidade plástica excepcional do arquiteto: esse equilíbrio está embutido no próprio processo produtivo da construção, em todas as tradições do mundo, como aqui em Zanzibar, na Tanzânia (fig. 85).
O que não é arquitetura tradicional

Depois dessa primeira aproximação ao que é arquitetura tradicional, é importante fazer algumas ressalvas sobre o que arquitetura tradicional não é. A arquitetura tradicional não é uma projeção invertida da arquitetura moderna, e acima de tudo não é uma projeção dos desejos e fetiches culturalistas do pensamento ocidental moderno. Esses desejos costumam implicar uma inversão de valores que tem o seu auge no Iluminismo europeu do século XVIII, com a alegoria do “bom selvagem” imaginada pelo filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (fig. 86).
Essa fantasia europeia pretendia substituir a história bíblica do jardim do Éden (fig. 87) por um milenarismo secular centrado no combo sociedade igualitária–posse coletiva dos bens e da tecnologia–vida em harmonia com a natureza. Ela inspirou movimentos socialistas como a vila de New Harmony, fundada pelo industrial escocês Robert Owen em 1824 no interior dos Estados Unidos (fig. 88), e o o romance utópico News from Nowhere do arquiteto Arts and Crafts inglês William Morris (fig. 89).



Tradição ou primitivismo


A utopia tradicionalista do Iluminismo tem como contrapartida uma visão colonialista e, no fim das contas, racista de sociedades não ocidentais como sendo “primitivas” (fig. 90). As culturas que foram chamadas de “tradicionais” pelos europeus do século XIX e XX eram descritas pelos antropólogos como sociedades desprovidas de história: elas estariam presas numa espécie de “eterno presente” das origens da humanidade, repercutido no argumento de 1957 do historiador da arquitetura Sigfried Giedion (fig. 91).
Caracterizar a arquitetura tradicional como sendo um produto de
sociedades sem história e sem progresso tecnológico nos leva de um erro
interpretativo para outro, que, este, é mais específico ao domínio da
história da arquitetura. A polarização entre arquitetura “não histórica”
e arquitetura “histórica”Fletcher e Fletcher, A History of
Architecture.
reforça um viés evolucionista que está no centro
das grandes narrativas convencionais em História da arte (fig. 39).

Na maioria dos livros-texto de História da arte e da arquitetura até hoje, esse viés fica bem evidente na distinção entre culturas artísticas eruditas e culturas vernáculas. Arquiteturas históricas são aquelas que se caracterizam, na narrativa, pela transformação ao longo do tempo, uma transformação impulsionada pelos grandes monumentos eruditos da Europa. Essa arquitetura erudita da Europa tem, geralmente, nome e sobrenome, com artistas ou, no mínimo, mecenas que se destacam pela sua contribuição para as inovações artísticas. Em contraste, as tradições vernáculas, tanto na Europa quanto em outras regiões do mundo, são relegadas a um segundo plano como um substrato cultural que (quase) nunca muda (fig. 92), e pode ser liquidado em um ou dois capítulos pro forma.
Conclusão
Essa narrativa apresenta a arquitetura vernácula como uma cultura construtiva que não está apenas parada no tempo, mas que, além disso, existe num plano cultural e tecnológico totalmente separado da arquitetura erudita que evolui no tempo. Só que essa separação não existe na realidade, pelo menos não antes da industrialização da arquitetura moderna. Os sistemas e os processos construtivos da arquitetura vernácula são em grande parte os mesmos usados na arquitetura erudita de cada região. No máximo, dentro do inventário de materiais e técnicas disponíveis, a arquitetura erudita tende a privilegiar os mais sólidos e duráveis, que são também mais caros. Mas nem sempre essa distinção material é muito evidente — o mais comum é a diferença estar no rigor geométrico e decorativo das construções.